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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta a um amigo querido: eu sei em quem você votou nas eleições passadas

"Peço que pense com carinho; que pense na alegria que será nos vermos livres do horror" - Agência Brasil
"Peço que pense com carinho; que pense na alegria que será nos vermos livres do horror" Imagem: Agência Brasil

Colunista de Universa

23/09/2022 04h00

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Querido T.

Faz tempo que não falamos de política. O nosso grupo de amigos tem milagrosamente cumprido o acordo tácito, em nome da boa convivência, de só falar de futebol (já que nosso apoio a um time só é quase unânime), e de dar aqueles parabéns coletivos nos aniversários. Até que tem funcionado: ninguém mais se irritou, há algum tempo ninguém mais saiu do grupo, e podemos continuar nos abraçando com força quando nos encontramos.

Mas hoje eu decidi te escrever. Decidi romper o acordo que nunca foi, de fato, proferido; decidi conversar com você como se estivéssemos falando de literatura, outro de nossos interesses em comum. Eu sei em quem você votou nas eleições passadas, naquelas em que o grupo ainda era palco de brigas, de tentativas desesperadas de convencimento; e sei que você se arrependeu. Me comoveu muito saber da cena em que você, sentado na mesa de jantar da sua casa, a luz pouca, sozinho, chorou pelo número de mortos por coronavírus que batia quase quatro mil todos os dias. Eu também chorei. Choramos todos, alguns ainda choram, principalmente os 17% que perderam um membro da família pela doença ou os 22% que perderam um amigo. Estamos entre os 86% dos brasileiros que conhecem pelo menos uma pessoa que morreu de covid, e entre os 100% que ainda precisam escutar a voz, em cadeia nacional, do responsável por 400 mil dessas mortes, evitáveis caso o manejo da pandemia tivesse sido outro.

Sim, estou falando de Bolsonaro, o pior presidente que este país já viu. Nisso, enfim, concordamos. Mas aqui chego ao motivo desta carta: a sua dificuldade em votar em Lula, mesmo que seja contra a encarnação de tudo o que desprezamos, tudo o que vai contra nossa moral, nosso respeito ao outro, aos direitos humanos, à arte, à vida.

Pois bem, querido amigo. Eu te entendo. Eu entendo porque também sinto desconforto diante do fato de que houve corrupção em absolutamente todos os governos brasileiros até hoje, inclusive os mandatos do governo Lula, simplesmente porque nosso sistema político funciona assim. Mas veja: nos governos petistas, a corrupção foi pelo menos investigada, e não descaradamente escondida em sigilos de cem anos como tem acontecido agora. E a vida nos anos Lula era melhor, isto é inegável: esta semana mesmo Henrique Meirelles, presidente do Banco Central de 2003 a 2010, lembrou que, quando Lula foi presidente, 10 milhões de empregos foram criados no Brasil; 40 milhões de pessoas saíram da linha da pobreza; o país conseguiu se manter dentro das metas de inflação, pagou sua dívida com o FMI e gerou reservas que ofereceram condições de enfrentar crises que vieram depois.

Éramos simplesmente mais felizes, querido amigo; tínhamos menos medo. Podíamos até discutir política, podíamos discordar, e suas filhas mulheres não eram cotidianamente ofendidas pelo presidente simplesmente por serem mulheres.

E, recorrendo ao mundo dos memes, esse manancial que alimenta e é alimentado pelo nosso imaginário, te digo numa linguagem que o pessoal do grupo aprovaria: não adianta dar o passe para quem não tem chance de fazer o gol. Eu adoraria que houvesse, para estas eleições presidenciais, uma alternativa viável, mas agora simplesmente não há: com chances reais de se eleger há apenas Bolsonaro e Lula, e este, é preciso reconhecer, jamais te fez chorar.

Peço que pense com carinho; que pense na alegria que será nos vermos livres do horror. Prometo estar ao seu lado para cobrar e criticar o governo Lula em cada dia de seu mandato. E, se nenhum de meus argumentos te tocar, te faço um último pedido: que considere ao menos votar em Alckmin, o vice em quem você muito provavelmente já votou. Pois até ele se juntou ao seu rival histórico contra a ameaça à democracia que se apresenta diante de nós.

É fácil, querido amigo. Você não precisa contar para ninguém, nem para mim (mas saiba que eu me encheria de orgulho de você). 1+3+confirma. Sem medo de ser feliz.

Com amor,
Natalia.