Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'A história surgiu de uma obsessão', diz Bruna Maia sobre primeiro romance
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É provável que você já tenha sentido vontade de se vingar de alguém que te fez sofrer por amor, ainda que possa não ter coragem de confessar. Ana, protagonista de "Com Todo o Meu Rancor", estreia de Bruna Maia no romance, não apenas confessa seus desejos, mas coloca em prática um plano mirabolante para dar o troco em Matheus, com quem teve um relacionamento abusivo. O resultado é um livro frenético, engraçado, ao mesmo tempo perturbador e difícil de largar, que expõe as costuras do machismo estrutural da sociedade brasileira e suas manifestações na contemporaneidade.
Bruna Maia é autora de "Parece que Piorou", livro de quadrinhos que compila a produção que ficou conhecida pelo seu perfil no Instagram "Estar morta". Ela enveredou para os cartuns por sugestão de sua psicanalista num momento de depressão. O humor e sagacidade com que desenhava as aflições de nosso tempo também estão presentes no romance.
Conversei com Bruna Maia sobre a transição da linguagem dos quadrinhos para a prosa, sobre os dilemas do amor em tempos de tecnologia e sobre um tema importante no livro, a legalização do aborto. Segue, na íntegra, a entrevista concedida por e-mail.
"Com Todo o Meu Rancor" aborda questões sobre se relacionar amorosamente hoje que já apareciam em suas redes sociais. O que veio antes, as personagens ou o que elas poderiam representar?
As personagens e as situações que eles vivem são indissociáveis, se manifestam em conjunto, mas de fato há um eixo temático que conecta meu trabalho em quadrinhos com o romance. Em ambos os formatos, parto da observação das formas das pessoas existirem e se relacionarem. As redes sociais facilitaram muito esse processo porque diariamente mulheres compartilham comigo suas experiências (em geral, péssimas).
Como é transitar entre quadrinhos, roteiro, pintura e romance? Como foi a decisão de escrever "Com Todo o Meu Rancor", de onde surgiu a vontade, a ideia? O que na forma romance te pareceu singular, o que você acha que só poderia ter sido abordado através dela?
Todas as linguagens artísticas pelas quais circulo têm em comum a narrativa, todas contam alguma coisa, de modo que não as acho tão diferentes entre si. A prosa foi o jeito como essa história fluiu, mas ela sempre foi imaginada de forma visual —tanto que o romance é acompanhado de pinturas e ilustrações que são parte da composição da personagem. A história surgiu de uma das minhas muitas obsessões. Tive o desejo de me materializar na casa de uma pessoa e enlouquecê-la e então fiquei pensando: como eu poderia fazer isso sem ter nenhum poder mágico? Os caminhos que percorri eram divertidos e decidi contá-los.
As epígrafes dos capítulos, escritas à mão, vêm de músicas em sua maioria contemporâneas, o que diz bastante do diálogo do seu livro com nosso tempo. Você conta um pouco como essas referências influenciam seu trabalho? Há, além dessas, outras referências em seu livro?
Passei o ano de 2021 inteiro ouvindo Fiona Apple. Ela é uma das maiores e mais expressivas artistas vivas e suas letras me ajudaram a elaborar muitas coisas. É impressionante como ela consegue expressar de forma tão direta e tão poética certos sentimentos —inclusive a raiva. Esse livro não faria sentido sem ela. As outras músicas também são canções que escuto sempre e que casam bem com os capítulos que antecedem. Assim como a história vinha com imagens, ela vinha com trilha sonora.
O livro "Meu Ano de Descanso e Relaxamento", de Ottessa Moshfegh, e o mito de Medeia me inspiraram muito para a construção de "Com Todo o Meu Rancor". O primeiro, pelo humor com que a personagem conta sua história absurda e triste, o segundo pela força de uma mulher poderosa cuja recusa a se conformar com o papel de vítima atravessou milênios.
Me impressionou o detalhamento de procedimentos técnicos no romance. Ana elabora uma vingança bastante sofisticada e complexa contra Matheus, incluindo identidades e seus respectivos disfarces, vigilância constante, acesso ao celular e ao computador dele, além de sedação e intoxicação, como que permitindo um acesso também ao inconsciente do abusador. Como foi a pesquisa que te permitiu chegar nisso?
Por sorte, a internet facilita muito esse processo. Em sites como o Reddit, você consegue dicas absurdas sobre qualquer assunto, e, procurando bem, você acha tutorial para tudo. Para as partes médicas, contei com a ajuda de alguns profissionais que conheço. O Uruguai e as outras andanças da personagem são baseadas em viagens que fiz. É perfeitamente possível escrever sobre um lugar em que você nunca pisou, mas eu acho muito difícil descrever algum ambiente sem no mínimo conhecer o cheiro ou o gosto dele.
Muito se discute, hoje, acerca do autobiográfico. Se há algo no livro que vem da sua vida, como isso foi transformado em ficção? Há um âmbito, será, mais que pessoal, coletivo em seu livro? Um modus operandi, um zeitgeist, que a sua ficção tenta apreender, talvez os tentáculos do patriarcado em tempos de capitalismo tardio?
Há vários trechos biográficos no livro —cresci mesmo em uma farmácia, o que explica minha fascinação por remédios. Mas a maior parte dele é completamente fantasioso, afinal, eu não gostaria de ser presa. Para compor o relacionamento de Ana e Matheus, amalgamei experiências minhas com as de amigas e outras mulheres com quem já conversei. Peguei leve, existem histórias muito, muito piores. O livro está completamente conectado com esse zeitgeist de mulheres abrirem a caixa de seus relacionamentos traumáticos, o que vem destruindo a esperança no amor. Acho mesmo que esse tipo de "amor" que na verdade não é amor, deve acabar; não acho que amar seja impossível, e isso fica claro ao longo da história.
A questão do aborto e da necessidade de sua legalização é bastante discutida no livro. No final, você escreve inclusive a orientação da ONU para um aborto seguro. Qual você acha que é o papel da ficção na transformação do mundo? A literatura é necessariamente política?
A literatura ou a arte não precisa assumir posições políticas tão claras —mas sempre acabam refletindo as opiniões políticas do autor. Alguns romances, por exemplo, narram a história de um casal no estilo "inimigos a amantes" de modo aparentemente apolítico, mas o pano de fundo pode ser heteronormativo, conservador ou queer, libertário. No meu caso, escolhi ser abertamente política porque acho que é covarde um artista progressista não se manifestar a favor dos direitos das mulheres e de pessoas oprimidas nos tempos em que vivemos. A ficção consolida por meio da imitação da realidade pensamentos que existiam no plano teórico, ela normaliza certos discursos e os torna palatáveis ao grande público. Com a série "I May Destroy You", Michaela Coel demonstrou de forma didática anos de elaborações sobre consentimento. Optei por expor ficcionalmente alguns fatos há muito estudados e debatidos: o aborto medicamentoso é seguro e recomendado, pode ser autogestionado nas primeiras semanas de gravidez, é algo comum, que muitas mulheres fazem, pode ser fonte de alívio e não de culpa, pode ser uma experiência compartilhada e não solitária.
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