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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Relacionamento aberto: como transformar a ideia de traição?

Luis Alvarez/Getty Images
Imagem: Luis Alvarez/Getty Images

Colunista de Universa

18/11/2022 04h00

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Mário e Rafaela não se chamam assim, mas a história do relacionamento deles é verdadeira. Estão casados há muitos e muitos anos, como se conto de fadas fosse; uma parceria amorosa de duas décadas é, afinal, coisa rara hoje em dia, e que bom, pois que bom que as pessoas não se sentem mais obrigadas a viver juntas se juntas não são mais felizes.

Mas estar juntos não é estar sempre feliz, não é e nem pode ser. Houve tempos difíceis para o casal; as filhas são lindas, mas demandam; o tempo desgasta até os elementos mais sólidos do universo, quanto mais o amor.

Chegaram a pensar em se separar, mas não muito a sério; queriam estar juntos, mas faltava o brilho, faltava o desejo, aquele inicial, que recruta cada célula do corpo para que se encha de impulso.

Um dia, a conversa, primeiro insinuada, depois franca: e se abríssemos o relacionamento?

Mas como fazer? Como lidar com o ciúme, com a ameaça, com ver o outro voltar-se para outro?

Decidiram que podia tudo. Combinaram: a única condição é voltar vivo para casa, voltar íntegro e vivo a cada noite.

E não contar. Que cada um vivesse suas coisas, ampliasse seu espaço individual, mas cuidasse para o outro não saber.

Escuto tudo isso de pé, segurando um drink, diante de Rafaela, que gesticula. Mário deu uma saída da conversa, foi enfrentar a fila do bar. Ela conta: um dia ele chegou diferente, reluzindo, os olhos com uma umidade extra. Chegou feliz, mais disposto, mais amável.

Eu escuto, curiosa, atenta, cheia de perguntas que cuido para fazer uma de cada vez. Mas como vocês fazem, mentem um para o outro? Que horas isso que deixa de ser traição acontece afinal? E o tempo, o tempo de estar em casa, a energia para isso, não diminui?

Rafaela está para me responder quando Mário volta segurando dois copos, um dos quais oferece a ela. Agora não posso contar, ela diz em voz alta, um sorriso no canto da boca. Meu olhar se dirige instantaneamente a Mário: ele gargalha, uma gargalhada boa, sonora, que perdura e ganha do barulho da noite.

Entendi no mesmo instante, pela primeira vez com tanta nitidez, o calar como gesto de cuidado: porque te amo, não te conto. A dissolução completa do sentido da palavra traição dentro da palavra acordo.

Entendi também que o amor pode ser muito diferente da tentativa (sempre falha) de união total dos mundos. Que ele pode precisar — e se beneficiar — de uma região não de mentira, mas de segredo. E que cuidar do outro é cultivar a distância na qual o outro se faz si mesmo, e não invadi-la, e preservá-la. E que respeito pode ser o oposto da troca; pode ser uma troca de silêncios, e saber que há — sempre haverá — naquele que se ama uma região inatingível, manifesta ou não.

Permitir que se amplie o que há de inacessível: talvez essa seja a maior cumplicidade a que se pode chegar.