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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O fim do Teatro Alfa, onde vi Pina Bausch e onde encontrava meu pai

Teatro Alfa, que anunciou seu fechamento, em São Paulo - Divulgação
Teatro Alfa, que anunciou seu fechamento, em São Paulo Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

25/11/2022 13h05

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A quem pertence um lugar? Como se pode vendê-lo? E comprá-lo, como é possível? Morar em São Paulo, ter crescido e me constituído enquanto sujeito em São Paulo, tem me obrigado a essas perguntas.

Frequento o Teatro Alfa há pelo menos duas décadas. Eu estava na faculdade ainda quando meu pai me levou para assistir ao Grupo Corpo, companhia mineira de dança contemporânea, pela primeira vez. Depois, ano a ano, eu o acompanhava nas temporadas do teatro das quais ele se tornou assinante assíduo. Era um dos nossos lugares de encontro; eu sempre chegava em cima da hora, ele sempre me escrevia cobrando de algum jeito divertido a minha presença, eu sempre o encontrava encostadinho ao lado do balcão da cafeteria, abrindo um sorriso ao me ver.

Esse sorriso é das coisas que mais me fazem falta depois que meu pai morreu, e o abraço que se seguia a ele. Continuar frequentando a temporada de dança do Alfa era um jeito de seguir encontrando meu pai, uma espécie de continuidade, de ritual herdado, algo que eu pretendia me manter fazendo indefinidamente.

Você já está sabendo?, escutei de um dos conhecidos do teatro antes da apresentação do último fim de semana. Não, eu não estava sabendo que tanto o hotel vizinho quanto o teatro haviam sido vendidos, junto de outros estabelecimentos da região, para o BTG Pactual construir no lugar um clube de luxo.

Não estava sabendo que os títulos do clube já começaram a ser vendidos e que cada um custa R$ 630 mil. Não estava sabendo que, ainda que tenha sido divulgado que será apenas uma reforma (para que reformar um teatro tão bonito e que funciona tão bem?), todos os funcionários serão desligados a partir de dezembro, quando se encerra a temporada. Funcionários que lá estão desde 1998, quando o Alfa foi inaugurado, e lá seguiram, testemunhando e operando o milagre de uma casa de cultura tão distante do centro de São Paulo vingar. Eu não estava sabendo que tudo isso acabou.

É estranha a sensação de estar em um lugar tão conhecido pela última vez. O corpo custa a assimilar a noção de perda, a desorientação, e só consegue mostrar ao mundo o brilho específico nos olhos de quando se esvai a garantia de futuro. Garantia sempre falsa, eu sei; mas toda vez que essa dolorosa verdade se apresenta, a pessoa fica com o olhar murcho, de um brilho triste, e é assim que estava o olhar da pessoa que me contou os fatos, e provavelmente o meu.

Subi as escadarias e me direcionei ao meu lugar de sempre. No escuro, nos primeiros acordes, o choro veio. Meu companheiro percebeu a vibração sutil e apertou minha mão. Da plateia, eu lembrava. A primeira vez que vim sem meu pai. A primeira vez que vim, com ele. A primeira vez que ousei, numa pista de festa qualquer, um movimento diferente, inspirado nos que vi nos corpos dos bailarinos. Os namorados que mudavam a me acompanhar, as amigas que decidiam vir de última hora quando meu pai não podia.

E o teatro ali, sólido, contínuo, a segurança da permanência de alguma coisa, a configuração da minha cidade, que se esfacela à minha volta (Mercearia São Pedro, Genésio, Filial, anexo do Espaço Itaú de Cinema, os cinemas de rua quase todos, sem falar nas vítimas da gentrificação que perdem, além da memória, as próprias casas, que perdem literalmente o chão), os lugares de afeto vendidos, descaracterizados, demolidos, cedendo ao que se costuma chamar de progresso, até que o palco onde vi Pina Bausch seja só memória.

Viver é, afinal, despedir-se constantemente; mas viver sob o pulso inumano do capital é uma despedida irrefreada, o tempo se desajustando da vida.

Que não me tirem o que resta dos cinemas e os livros, que jamais me tirem os livros, pensei, temendo não ter mais templo algum onde encontrar meu pai.

Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar, José Saramago me disse um dia.

Pela última vez sentada naquela plateia, me emociono com o movimento e a música.