Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O conto de Natal impossível
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Eu deveria escrever um conto de Natal. Tentei: a ideia, as anotações, o arquivo aberto, o conto de Natal de Paul Auster na cabeça. O tempo passando, o prazo, o Natal se aproximando sem que conto algum chegasse a existir. A angústia de recorrer enfim ao que todo escritor um dia recorre, escrever sobre a dificuldade de escrever.
O conto partiria de uma cena. Outro dia estava presa no trânsito dentro do túnel que atravessa por baixo a Marginal Pinheiros, o carro parado, o rádio chiando, e pela janela, de relance, notei algo se movendo. Era um homem, um homem sujo, dobrando um cobertor no que havia feito sua casa, o vão lateral cheio de encanamentos do túnel. Evitei olhá-lo, pois olhá-lo era a invasão de sua intimidade, mas estávamos muito perto, só o ar estremecido de fumaça na escuridão parcial que zunia entre nós.
Aquela cena ficou. Vou escrever sobre isso, pensei, pois uma escritora lida com o que vê dessa forma, guardando para escrever, escrevendo para elaborar, recebendo detalhes, contextos e encontros como se fossem presentes, pingentes que depois o cordão de palavras vai sustentar.
O conto seguiria a mulher no carro rumo ao seu dia, o engarrafamento, as compras de Natal no shopping abarrotado, a vida tantas vezes insuportável que tingimos de bela só porque é nossa, só porque é a que nos coube viver. Mas um conto de Natal precisa ter algo de esperança, e é difícil ter esperança em 2022, ainda mais quando se está escrevendo sobre compras, carros, engarrafamentos, todo esse horror que o capitalismo nos legou e que celebramos a cada dezembro como se fosse o melhor de nós.
Se meu conto de Natal existisse, os presentes que a mulher comprou estariam então debaixo da árvore, e ao redor da mesa da ceia estaria toda a família dela, a família enfim reunida depois das desavenças do período das eleições. Segundo as anotações do conto impossível, eles celebrariam juntos, e eu descreveria cada um em suas ambivalências no momento do brinde, os copos em riste, um instante de alegria quando se esqueceria que a tia votou no candidato fascista, que o pai não aceita a namorada da filha, que a mãe está exausta por ter cozinhado tudo sozinha mais uma vez.
Dentre os convidados da ceia estaria o primo, parceiro de trabalho de uma paciente transformado em personagem com sua devida autorização: um homem de gel nos cabelos penteados para trás, cheio de músculos por debaixo da camisa de marca, o tênis com o logo (talvez o preço) de um carro, que cuida sozinho da filha de 13 anos desde que ela nasceu.
Assim como ele, cada um teria a sua beleza, a sua bondade, a sua contradição. A filha enfim conseguiria dizer que aquela não é sua amiga, que é namorada; a avó que votou no fascista surpreenderia a todos, a acolheria e diria seja feliz; o pai, sempre alheio, recolheria os pratos da mesa e lavaria a louça, e de repente a mulher que estava no carro e continua sentada à mesa se lembraria do homem do túnel, enfim sozinho, a casa asfáltica inteira dele.
Mas o conto não saiu, pois a própria ideia de conciliação é ilusória, mesmo e principalmente no Natal; e o que é o Natal, afinal de contas — o que é a esperança — senão a nossa fé nas histórias que se contam ao não se contar; o sim que nasce do não. E o que é o amor, em nome do qual seguimos celebrando ano a ano, senão isso: o desespero que floresce. Feliz Natal.
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