Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Você consegue largar o celular?
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Era feriado, e buscávamos um programa para fazer com as crianças. Decidimos ir a uma exposição, aquilo que antigamente era conhecido por um conjunto de obras de arte diante das quais assumíamos uma postura contemplativa e, provavelmente em silêncio, nos dávamos a chance de nos sentir tocados por elas.
O que encontramos, no entanto, foi um amontoado de gente, quase todos empunhando celulares por meio dos quais fotografavam os ambientes que pareciam feitos para isso, para serem fotografados e postados, muito mais do que vistos. Quando alguém decidia olhar para além da própria tela, deparava-se com outra, pois a montagem de reproduções de obras do artista também era virtual. Um incômodo se apoderou de mim enquanto eu tomava posição na fila indiana e, entre uma e outra pintura, olhava o meu próprio aparelho.
A humanidade não estava pronta para tamanha conexão, uma conexão tão incessante que sufoca. O apelo do celular, esse dispositivo que temos agora como nossa extensão, é imenso: um apelo existencial, um apelo químico, pois os likes atuam em nosso cérebro como drogas das quais passamos a precisar.
Falo por mim: checo o Instagram inúmeras vezes por dia, ocupo a sacralidade dos meus momentos de silêncio com comentários de pessoas que nem conheço no Twitter. Havia escapado da televisão, mas, desta vez, não escapei.
Nossos aparelhos celulares se tornaram nossa memória, nosso senso de direção, a organização de nosso mundo. As redes sociais passaram a reger as nossas relações e afetos. Uma mudança profunda se deu em nossa relação com o tempo: precisamos estar disponíveis, ou isso é interpretado como descaso, configurando o contrassenso de uma paranoia compartilhada.
Nosso jeito de pensar e de organizar os pensamentos também estão sendo profundamente afetados.
Expomos nós mesmos a uma grande quantidade de informação entrecortada, a múltiplas demandas jamais finalizadas: vou pagar uma conta, dou uma olhada num aplicativo e sou bombardeada num intervalo curtíssimo de tempo por notícias da Ucrânia, da Colômbia, pelo look de alguém que nunca vi para uma festa à qual não fui, por notícias da Amazônia, do México, da Austrália, por debates sobre política, pela última polêmica (sobre a qual me sinto obrigada a me posicionar —quem não posta não existe de certa forma), por saber que fulana está solteira, que sicrano tem um trabalho novo, e o mundo parece movimentado e com um sentido falso que me impele a buscá-lo sempre e sempre mais.
Trocamos nossa mera presença no mundo pela multiplicidade que as telas nos oferecem, mesmo que elas estejam nos mostrando exatamente o que há em nosso entorno: preferimos, em boa parte das vezes, essa mediação que nos arranca nossa própria raiz; que, ao prometer o inverso, nos desancora e nos desampara.
Perdemos a diferença crucial entre o público e o privado, entre o que mostramos e o que deveríamos resguardar; estamos perdendo nosso lastro em nossos dias, a capacidade do tédio, do vazio.
Já há alguns anos não sou capaz de ver um pôr do sol que seja só meu; já não consigo ler uma frase de efeito no meio de um livro e não imaginar quantas curtidas teria caso eu a dispusesse no Twitter. Viramos do avesso nossa intimidade.
E você provavelmente está lendo tudo isso na tela do seu celular.
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