Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A volta ao divã: quem sou eu diante do mesmo analista uma década depois
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Eu não posso chorar, não posso, o olhar lacrimoso no espelho do elevador me dizia acima da imagem da boca contraída num esforço de contenção. Mas eu sabia que, quanto maior a tentativa de refrear, mais forte o ímpeto; sabia também que, por ele, o analista ao qual eu voltava, não haveria problema algum eu aparecer aos prantos nove anos depois.
A subida até o décimo andar foi um concentrado de tempo. Da última vez em que coloquei os pés naquele cubículo, eu tinha um filho de quatro anos, um total de zero livros publicados, um ex-marido que me complicava a vida e muitos sonhos. Eu tinha um pai, uma mãe, um mestrado recém-defendido e muita solidão. Tinha um trabalho de que gostava muito e a sensação de ainda não ter chegado em casa. Tinha perguntas, muitas perguntas, e uma vontade imperativa de amor, de encontrá-lo, olhar na cara dele, reconhecê-lo, enfim.
Na sala de espera, o mesmo tapete, o mesmo quadro, a imagem da floresta em tons de verde escuro e um pedaço de água — lago ou rio. Uma imagem tanto pacífica quanto perturbadora (algo no escuro das folhas, algo no recorte, a incompletude, talvez, a precisão excessiva de detalhes).
Na mesinha de canto, um vidro de álcool-gel, único sinal de que a pandemia também havia passado por ali, de que naquele recanto de mundo, ainda que fosse óbvio, o tempo também transcorreu.
Uma sensação de paz me invadiu. Abri a bolsa e comecei a tomar notas para este texto. Um lugar-pedra, escrevi, um lugar que fica enquanto o entorno corre; um lugar que me oferece uma ilusão de constância, a pacífica sensação de continuidade que Ecléa Bosi diz se desprender dos objetos em O tempo vivo da memória.
Eu deveria, percebi, de tempos em tempos, voltar a algum desses lugares. Uma esquina, uma casa, um cômodo, mesmo um caderno. Algo que tenha ficado. Algo que me permita prestar contas comigo mesma, perscrutar quem fui e o que me tornei, concluir que tanto mudei quanto continuei a mesma.
Já não tenho pai, já não tenho mãe. Bem, não um pai vivo, nem uma mãe com memória suficiente para continuar sendo minha mãe. Dele, tenho lembranças; dela, o cheiro, o corpo comandado por um cérebro corroído pelo Alzheimer e a incumbência de contribuir com as cuidadoras todo mês.
Tenho mais um filho, hoje, com quase seis anos. O que tinha quatro já está alcançando os treze. Olhei e sigo olhando na cara do amor, mas ele não é como eu imaginava; ele se transforma, se desloca, escorre junto das lágrimas, volta e vai.
Escrevi, continuo escrevendo, e descobri que minha casa é feita de palavras, tão frágil quanto elas, tão minhas e tão alheias, e que o que se chama de realização não é mais do que oferecer ao mundo o próprio avesso. E que a vida é esse transcorrer, sempre falho, incompleto, mas tão bonito, afinal. Mesmo que tantas vezes triste. Mesmo que visto do divã do analista tanto tempo depois.
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