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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Há prazer em ver a infelicidade dos milionários antiéticos e trapaceiros

O elenco de Succession - Divulgação/HBO
O elenco de Succession Imagem: Divulgação/HBO

Natalia Timerman

Colunista de Universa

30/04/2023 04h00

Um cheiro muito peculiar de perfume invadiu minhas narinas quando cruzei com uma pessoa na rua. Não tive tempo de reparar se era um homem ou uma mulher, vi apenas o vulto pelo canto do olho, mas o perfume ficou.

Não era exatamente bom. Quer dizer, era bom, devia ser, formulado pelos mais sofisticados laboratórios, uma mistura dos mais específicos aromas, mas o que me chamou a atenção, junto do cheiro, que me tomou não só as narinas, mas provavelmente a alma, foi a atmosfera que carregava consigo, uma paisagem de luxo, beleza, desperdício e vigor. Como se, ao inspirar aquelas partículas invisíveis das quais eu podia sentir a fragrância, eu fosse proustianamente transportada não para outro tempo, mas para outro espaço, um espaço de gente bilionária no qual provavelmente jamais vou pisar. Sentir aquele cheiro era quase como se pisasse.

Tenho uma sensação parecida ao assistir a séries como "Succession" e "The White Lotus".

Não estou falando dos roteiros, das atuações, da câmera que treme e tensiona, dos plot twists que, de tão esperados, não chegam a dar tantas voltas assim. Falo da riqueza. Do exagero que ao mesmo tempo incomoda e apraz, e parte do incômodo se dá pelo próprio fato do prazer, um de mãos dadas com o outro. Incômodo e prazer amalgamados: o verdadeiro significado do gozo.

Sim, há prazer em assistir aos super ricos se esbaldando, voando de helicóptero, torrando milhares de euros com prostitutas nas férias, há prazer de ver o exagero ou a assepsia elegante das roupas, os detalhes, o luxo, o dinheiro exercendo seu poder.

Não se trata apenas do prazer em se deparar com personagens maravilhosamente horríveis, trapaceiros, antiéticos, abusivos, nem do gozo diante da infelicidade deles, que ofereceria o alento moral de a riqueza não trazer, enfim, felicidade. Isso vovó já nos dizia contando histórias para dormir.

Trata-se de um prazer que a doença e a morte dos personagens até agudiza, porque com ele contrasta: pois doença e morte são o esfacelamento total da segurança, a farsa nossa de cada dia. Aquela riqueza toda esfregada na nossa cara tem como pano de fundo, como pressuposto, como fundamento a ideia (equivocada) de que aquilo tudo só existe porque existe segurança no mundo. Ou, formulando melhor: se há alguma segurança no mundo, é ali que ela está.

As melhores casas, roupas, comidas, festas: o destino de toda a exploração do planeta, de toda a pobreza, a convergência de milhares de hectares e séculos de horror, encontraria uma vergonhosa justificativa naquele nosso ínfimo prazer. Tudo bem, o diabo sussurra em nossos ouvidos. Está tudo bem, mundo cruel, porque há alguém que se regozija e se esbalda.

O prazer de que a riqueza exista como mera possibilidade. Mesmo que não seja nem nunca vá ser nossa.