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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Intimidade, hábito e conforto: o que acontece com a paixão que continua?

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Imagem: Unsplash

Colunista de Universa

07/05/2023 04h00

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Nunca nos casamos, mas eu percebi que estávamos de fato comprometidos na fila de autógrafos de um amigo escritor: era o lançamento do seu livro e, quando chegou nossa vez, ele perguntou se deveria fazer a dedicatória para os dois.

Rapidamente nos olhamos: tínhamos alguns segundos para decidir se moraríamos na mesma casa, se planejaríamos a vida como casal, mas, principalmente, se juntaríamos as nossas bibliotecas — pois juntar as bibliotecas é, ao lado dos filhos, que de certa forma também unem duas pessoas para sempre, também um casamento definitivo.

Sim.

E o Fabio Weintraub, que então lançava um livro de poemas, provavelmente nem se lembra ou sequer soube que foi o sacerdote da nossa união, ocorrida em 2016 no Patuscada, bar literário de São Paulo.

Dia desses eu estava fazendo, para um texto, um inventário de paixões, tentando enumerar numa lista impossível as pessoas por quem me derramei de amores. Ele, que lê quase tudo o que escrevo, brincou: e eu, não caibo nessa lista, não?

Foi fácil me lembrar das nossas primeiras semanas, dos nossos primeiros meses, da primeira vez de cada coisa que fizemos juntos. Foi fácil me lembrar do nosso encontro inusitado, da surpresa com o calor do beijo lento, da espera diária pelas mensagens do começo — e como demoravam, aquelas mensagens, e como aquela demora me fazia sofrer. Eu não hesitei em me desfazer de todos os casos da época para viver o que era, sem dúvidas, uma paixão arrebatadora, e a nossa música era "Purple rain" na voz e na guitarra do Prince.

Por que não o coloquei, então, no meu catálogo de paixões? Por que só figuravam ali as paixões interrompidas, os amores perdidos antes de vingar? Que espécie de mágica acontece quando alguém vai embora que faz parecer que a pessoa fica mais, ao invés de sumir, como que preservada para sempre em formol?

E, no polo oposto, o que acontece com a paixão que continua? No que ela se transforma ao longo dos anos? Intimidade, hábito, parceria, conforto, seria essa a conjugação do amor?

Por que a espera pelas mensagens dele, depois de sete anos, não me fazem mais cócegas? Até o amor ser bom, ele é tão ruim, canta Letrux, mas aquele ruim também tinha algo de terrivelmente bom. E o terrível vai dando lugar ao entrelaçamento das pernas à noite, ao almoço que se sabe preparar sem perguntar, à cumplicidade diante de cada conquista dos filhos, à linguagem em comum. À rotina, que precisa do amor, mas o usa até gastar.

(Outro dia colocamos "Purple rain" no carro e nosso filho menor adorou. Na melhor parte da guitarra, aquele solo inesquecível que nos causava arrepios, ele reconheceu, animado, o solo de uma música da Galinha Pintadinha. Olhamo-nos e só nos restou gargalhar.)

Era nessas coisas que eu pensava quando chegou a minha vez de perguntar: faço a dedicatória para os dois? E o casal à minha frente se olhou rapidamente e pensou se moraria na mesma casa, se planejaria a vida a dois, se juntaria as coisas, os livros, o tempo, e decidiu que sim.

Eles foram então se afastando, com meu livro passando da mão de uma para a do outro, e eu sofri antecipadamente por eles: vai doer, vai doer quando eles se separarem, e um livro não é possível de ser rasgado para dividir-se em dois.

Ou não, pensei olhando-os sorrir, cada vez mais longe, meu livro já guardado na bolsa dela. Talvez a paixão deles termine como a nossa: num amontoado bonito, longo e milagroso de dias, às vezes empoeirado, outras tantas brilhante, que se chama vida em comum.