Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O casamento da Pequena Sereia: o sonho de uma mulher só pode ser um homem?
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Quando meus filhos pediram para ir ao banheiro no meio do filme, percebi: a maior interessada em ver o live action de "A Pequena Sereia" era eu.
Pudera: minha irmã e eu assistíamos em looping à versão de 1989. Quase posso ouvir, para além da voz e do sotaque inesquecível de Sebastian cantando "anda da see" em inglês, o clique da fita VHS sendo engolida como mágica pelo aparelho de videocassete, que começava lentamente a rodar.
Sabíamos frases, gestos e músicas de cor; antecipávamos a próxima cena, o que não nos impedia de nos emocionar a cada vez. Nossa pouca idade (eu, uns nove; ela, uns sete anos) nos poupou de perceber o furo no roteiro, corrigido na versão atual: se Ariel assina o pacto com Úrsula, se a sereia sabe escrever, por que não se comunica com o príncipe Eric por escrito? Para nós, o filme funcionava perfeitamente: não teria sido necessário que Ariel se comprometesse dando à tia uma gota de sangue no lugar da assinatura.
Mas tudo bem, nenhum problema com a mudança. Nenhum problema com as imagens fotográficas, coloridas, dançantes, absurdamente realistas de uma sereia falando debaixo d'água e suas irmãs, todas belíssimas. Quando soube que haveria uma nova versão em live action, apenas perguntei: as músicas serão iguais?
Sim. As canções são praticamente as mesmas, exceto por três novas, compostas também por Alan Menken, responsável pela trilha sonora da versão de 1989, agora ao lado de Lin Manuel-Miranda. Eu não havia lido nada sobre o filme antes e achei que não as conhecia por uma falha compreensível de memória depois de mais de trinta anos; a mim, não destoaram das antigas. E eu me senti como se estivesse no sofá da casa da minha infância, de novo a escutá-las e cantá-las uma a uma. O estranho familiar: era igual, e no entanto não era. Era melhor, até: pois Halle Bailey está magnífica como Ariel, com sua doçura pueril e ávida, seus olhinhos que brilham diante do mundo humano, sua obstinação corajosa e inconsequente (ou seja, sua paixão).
Na saída, eu enxugando uma lágrima que escapou envergonhada, pergunto aos meus filhos: e aí, gostaram? O de seis diz que sim; o de treze, que flagrei dando umas cochiladas na poltrona ao lado, que mais ou menos. Ah, mãe, muito clichê.
Clichê?, eu pergunto, me sentindo desnudada, a origem dos meus sonhos de criança e de adulta desvendada: um final feliz demais, ele diz. Começamos a pensar juntos: mas que filme da Disney não tem um final feliz? Perguntei se o problema era que "A Pequena Sereia" terminava em casamento. Acho que sim, ele respondeu depois de ponderar.
Nos pusemos, então, a repassar os filmes: até há bem pouco tempo, aqueles feitos "para meninas" terminavam em casamento; aqueles "para meninos", na vitória ou na conquista do mundo. Não é preciso explicar muito: é a reafirmação (ou mesmo a construção) quase explícita do imaginário em que o sonho de uma mulher só pode ser um homem, enquanto o de um homem é o poder, a aventura, o universo ou o que ele quiser.
E, no entanto, "A Pequena Sereia" continua falando comigo (a lagriminha não me deixa mentir). Continuo achando bonito um ideal de amor e não acho que filme algum deva ser cancelado, muito menos os do passado.
Porque tentar se livrar do que já foi, escondendo-o de nós mesmos, é uma das melhores maneiras de o fortalecer -- o tal do recalque, que sempre retorna. Porque há espaço para novos desfechos sem que os antigos tenham que deixar de existir. E principalmente porque a arte é o lugar tanto do passado quanto do futuro, mas também do que nunca será; é o lugar do conflito, do inadmissível, do que de outra forma não se poderia dizer. E também de reafirmar que somos humanos, e amamos, e seguiremos amando e querendo amar até o fim dos tempos.
Conheça produtos de A Pequena Sereia:
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.