Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Perguntaram-me se ler faz bem. O correto era que eu respondesse que não
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Tenho um caderno secreto em que anoto leituras, destaco trechos e atribuo notas a cada livro que leio. Meu critério, totalmente subjetivo, dá nota máxima para aqueles que me causam reações físicas: os que me causam taquicardia, gargalhadas ou choro, prova de que aquelas palavras, capazes de recrutar até meu corpo, foram mais que eficazes em construir um lugar narrativo que me mobilizou e para o qual eu sinto, durante o tempo em que o livro está comigo, avidez por voltar.
"Ioga", de Emmanuel Carrère, provavelmente receberá nota máxima. Eu ri e chorei e o devorei como há muito não fazia com um livro. Um livro feito de avessos, de costuras à mostra, um livro que se transforma ao se construir, o que a excelente tradução de Mariana Delfini preza por manter.
Terminei-o literalmente em voo, no avião, voltando de uma viagem. Prestes a pousar na escala em Paris, me segurei para não cutucar meus vizinhos franceses de assento e perguntar, entusiasmada: vocês já leram isso? É bem possível que a resposta fosse sim, pois "Ioga" foi um verdadeiro sucesso de vendas na França, e não apenas por questões literárias. Carrère foi proibido judicialmente pela ex-esposa, Hélène Devynck, de escrever sobre ela e a filha deles, e sua ausência é bastante nítida no livro, bem como a atordoante culpa que levou o autor a acatar a proibição completamente. Ou quase que completamente: o único trecho em que o nome dela aparece é a transcrição de um livro anterior, artimanha que até se justifica, pois de fato, ela não pode proibi-lo de escrever o que ele simplesmente já havia escrito quando eram casados.
O livro é o que é e funciona muito bem com a ausência gritante de Hélène, de quem Carrère se separou para mergulhar no colapso mental narrado na terceira parte do livro. Mas fiquei com a pergunta: o que é maior, a literatura ou a privacidade? Se o autor não conseguisse fazer com que o livro existisse sem a figura de sua ex-esposa, ou se "Ioga" fosse menos genial por conta dessa ausência, estaria ela em seu direito, privando os leitores do mundo de uma possível obra-prima literária? Eu sinceramente não tenho a resposta.
Mas voltemos ao livro, se é que essas questões estão mesmo fora dele. Ou voltemos ao meu longo voo, agora para o Brasil, em que acabo cochilando entre uma página e outra e sonho com o hospital onde Carrère foi internado para tratar de um quadro depressivo grave. Talvez não sonhe, apenas devaneie, ou transite entre um e outro, no lugar limítrofe instaurado pela própria escrita. Pois é isso o que Carrère logra: construir uma zona fronteiriça, seja entre yin e yang, seja entre mania e depressão, seja entre ficção e realidade.
Há algo de cínico e arrogante no tom da primeira parte, prepotente, talvez maníaco, em que o autor pretende escrever um livrinho "simpático e perspicaz" sobre ioga, e esse tom é quase que totalmente varrido da segunda metade do livro, quando ele está internado para tratar de uma depressão devastadora. Não me lembro de ter visto antes na literatura, aliás, farta de descrições de ambientes manicomiais tenebrosos e tratamentos desumanos, tamanho elogio à psiquiatria e às medicações psiquiátricas como vi em "Ioga". Há ali até alguma condescendência com relação à eletroconvulsoterapia, que não chega a fazer remitir o quadro depressivo de Carrère, mas parece ser o que minimamente o faz voltar a respirar. Não que a abordagem anterior, a da denúncia da violência manicomial, não tenha sido e não continue sendo necessária, mas talvez tenha chegado o momento de lidar com os estigmas aguçados por ela e se deparar com o fato de que, sim, às vezes um tratamento psiquiátrico bem indicado e conduzido pode salvar -- não só uma vida, mas também um livro, pois sabe-se lá se Carrère conseguiria ter escrito se não estivesse bem. E mais uma vez a zona fronteiriça se faz nítida: não tenho como saber se a oscilação de humor da primeira para a segunda metade do livro foi real, mas sei que funciona como recurso narrativo, como efeito de verdade.
Escrever sobre a loucura dentro da própria loucura, ademais, coloca em outro patamar a autoficção. Ainda que outros autores tenham escrito da e na loucura, aqui estamos diante de um livro que privilegia a literatura, servindo-se, no entanto, da loucura para se fazer. O narrador tenta domar a própria mente com a meditação, e desconfiamos: desconfiamos do controle da mente e do narrativo ao mesmo tempo, e no entanto o romance existe, escrito sobre o fio da navalha, fruto dos escapes dessa mente que tentava se controlar. O que acessamos, então, é a sobra da meditação, os pensamentos que a atrapalhavam, o seu fracasso.
Mas não só, pois Carrère transita entre pólos, consciente do livro que resulta disso: "Essa vida, a minha, pobre vida miserável e às vezes vivaz, e às vezes amorosa, não foi apenas ilusões e derrotas e loucura, o pecado mortal é esquecer isso. Nas trevas, é vital se lembrar de que também vivemos na luz e que a luz não é menos verdadeira que as trevas. E tenho certeza de que isso pode ser um bom livro, um livro necessário, que conseguirá reunir os dois pólos: uma aspiração longa à unidade, à luz, à empatia, e a poderosa atração oposta da divisão, do fechamento em si, do desespero."
A alegria de um escritor é a imagem de seu leitor escutando, na realidade, uma canção que mencionou na ficção. Procurei ávida a "Polonaise", de Chopin, no catálogo do avião; vi, depois, incontáveis vezes o vídeo em que Martha Argerich a executa, fiz inclusive toda minha família ver, tentando dividir algo não só da música, mas da leitura, como se oferecendo a eles um pedaço de uma delícia degustada. Algumas páginas depois, Carrère diz imaginar o leitor fazendo o que fiz, antecipa o gesto de ir atrás da música, dissolvendo mais uma vez (sem modéstia) a barreira entre ficção e realidade -- que talvez, ponderamos depois de ler, nem sequer exista.
Dia desses, em uma mesa sobre literatura, me perguntaram se ler faz bem. Eu já havia escrito ingenuamente que sim, depois aprendi que o esperado, o mais correto ou sofisticado era que eu respondesse que não, e há, de fato, uma verdade importante nisso, pois na era do utilitarismo, a literatura precisa poder escapar de servir para qualquer coisa que não ela mesma. No entanto, preciso dar o braço a torcer: a mim, ler faz bem. Ler um livro como "Ioga", além de prazer, me proporciona um alinhamento existencial, digamos assim: o mundo tem jeito, ainda que não tenha. Há esperança, ainda que a escrita seja sobre seu fim.
Fico com vontade de que o livro não acabe; de seguir o conselho de um dos mestres de Carrère de não fazer nada, de simplesmente permanecer na dor -- na dor dele. Que constrói um lugar narrativo da própria dor, em sua autoficção não só dos fatos, mas do psiquismo.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.