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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na plateia, uma mulher abraçava a outra, que não conseguia parar de chorar

A atriz Julia Lund na peça "Vista" - Foto: Reprodução/Instagram @julialund
A atriz Julia Lund na peça "Vista" Imagem: Foto: Reprodução/Instagram @julialund

Colunista de Universa

02/07/2023 04h00

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Como contar uma história? Como contar a história de um estupro? E se for uma história verídica, que aconteceu com uma pessoa muito próxima, como escolher a voz narrativa? Como fazê-lo de forma verdadeira e respeitosa e ao mesmo tempo balancear realidade e ficção? Como manter a distância certa da dor?

Imagino Tatiana Salem Levy se perguntando tudo isso para escrever o belíssimo "Vista Chinesa", romance baseado na violência sexual sofrida por sua amiga próxima Joana Jabace. A narradora de Tatiana opta por se dirigir aos próprios filhos em uma carta que não sabe se eles chegarão a ler, o que é também uma maneira de escrever para si mesma. Ela escreve porque "há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo. Elas não te deixam esquecer porque se repetem todos os dias."

Faz mais de dois anos que li "Vista Chinesa", mas o livro voltou à tona com toda a força quando assisti "Vista", a adaptação para o teatro com atuação de Julia Lund.

Não sei se é correto dizer que se trata de um monólogo. Responsável pela adaptação, o núcleo de pesquisa e criação Polifônica faz jus ao nome. A peça tem início com a leitura, pelas vozes de várias mulheres, de trechos do livro de Adriana Negreiros "A vida nunca mais será a mesma", que também parte de um estupro, mas aí narrado em primeira pessoa.

Os recursos de vídeo e microfone em "Vista" são bem-sucedidos em sustentar o vigor que já havia no romance, ainda que sejam experiências muito diversas, ler e assistir. A peça é um condensado do impacto que o livro já proporcionava. A impressionante cena da mesma atriz interpretando a delegada que a interroga e acaba fazendo eco à violência primeira ("como era a luva? Você tem certeza? Tem certeza? Tem certeza?") recruta o corpo inteiro de quem assiste, e principalmente de quem já foi vítima de alguma violência sexual (e eu não conheço uma mulher sequer que não tenha sido).

Mas as "Vistas" de Tatiana e Julia se propõem, com suas próprias vozes, a transformar o eco da violência em outro eco: o das mulheres que, juntas, não têm outra alternativa que não resistir.

É assim que leio tanto livro quanto peça: um tecido de vozes no centro do qual está, desta vez, Joana Jabace. Não sei se isso aconteceu na realidade, mas no livro, quando a mulher recém-violentada consegue enfim voltar para casa, já na porta é acolhida por uma amiga, que a abraça e a permite, então, desfalecer. Vejo essa amiga como o segundo círculo, em volta do oco da dor. E depois Tatiana Salem Levy. E depois Adriana Negreiros. E depois Julia Lund. E depois a mulher na plateia que abraçava a outra quando, finda a peça, não conseguia parar de chorar.

Uma mulher acolhendo a outra, cuidando da dor da outra, até que já não haja mais dor. Eles são muitos, mas nós somos muitas mais.