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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Kundera, Lee, Zé Celso: minhas referências estão morrendo, agora somos nós

Milan Kundera, autor de "A insustentável leveza do ser" - Miguel MEDINA / AFP
Milan Kundera, autor de "A insustentável leveza do ser" Imagem: Miguel MEDINA / AFP

Colunista de Universa

16/07/2023 04h05

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Milan Kundera morreu. É um pesar diferente o que me toma, não como o que sinto perante a morte de alguém fisicamente próximo. Um pesar pelos livros que ele já não poderá escrever, ainda que seu último romance tenha sido publicado há quase dez anos e que ele, com 94, provavelmente já não escrevia faz tempo; um pesar pelo fim da mente que criou "Risíveis amores", um dos meus livros de contos preferidos, e "A insustentável leveza do ser", um dos romances que marcou minha formação como leitora, que me ensinou o prazer de ler.

Mas há ainda outro pesar. Uma amargura que se junta à da morte de Cormac McCarthy, à de José Celso Martinez Corrêa, à de Rita Lee e Gal Costa: minhas referências estão, uma a uma, indo embora, deixando para trás o mundo que ajudaram a transformar no que é hoje.

Desamparo: é isso o que sinto, o afeto da orfandade, que pode facilmente me lançar num saudosismo inútil. Tenho 42 anos, é óbvio que as pessoas que fundaram o mundo da minha juventude estão chegando à sua vez de morrer. Mas me invade a sensação de que não são substituíveis. Talvez porque não sejam: a internet, a velocidade, a inteligência artificial e a relação que temos hoje com o tempo transformaram e estão transformando o conhecimento, a ciência e a arte e por consequência o seu fazer, e tudo isso me dá a impressão de que não somos e não seremos tão capazes quanto os que vieram antes. Mas aqui caio no mesmo passadismo, o mesmo afeto que marca geração a geração e que faz a humanidade, ao longo dos anos, prezar pelo que já se foi como sempre melhor do que o que ainda é ou vai ser (Woody Allen, que não quero cancelar, capturou bem essa nuance afetiva em "Meia noite em Paris").

O que funda, na verdade, esse desamparo é o fato de que agora a referência somos nós. É isso o que me assola: o peso da responsabilidade de, quando as referências de uma geração morrem, ter chegado sua vez de se constituir como referência da próxima. Então, a inevitável pergunta: conseguiremos? Teremos estofo suficiente?

Lembro da citação de um livro que não li, mas com que me deparei nas redes sociais do amigo Roberto Taddei e que nunca mais esqueci. "Um antídoto contra a solidão", de David Foster Wallace, traduzido por Sara Grünhagen e Caetano Galindo, está ali na minha infindável lista de próximos livros, e eu lido com a sensação de farsa de citar o trecho de um livro que não li me dizendo que minha relação com a literatura também é minha relação com a insuficiência. David Foster Wallace fala do parricídio das referências, não da morte física e inevitável delas, mas o afeto da perda é similar, e a perda do próprio Wallace por suicídio se junta aqui, com o agravante de que ele, que escreveu o que vem a seguir, quis morrer, e que agora estamos vivendo a morte justamente dos parricidas, que nos legaram a orfandade e agora dobram a aposta ao morrer.

Peço licença, então, para a maior citação que já fiz nestas colunas. Vocês verão que valerá a pena:

"Para mim, esses últimos anos da era pós-moderna pareceram mais ou menos como aquela situação em que você está no ensino médio e os seus pais vão viajar e você dá uma festa. Por um tempo aquilo é genial, é livre e libertador, a autoridade parental se foi, está derrubada, um festim dionisíaco do tipo o-gato-foi-embora-vamos-brincar. Mas aí o tempo passa, e a festa vai ficando cada vez mais ruidosa, e as drogas acabam, e ninguém mais tem dinheiro para comprar drogas, e coisas foram quebradas e derramadas, e tem uma queimadura de cigarro no sofá, e você é o anfitrião, e aquela casa também é sua, e você gradualmente começa a desejar que os seus pais voltem e restaurem um pouco de ordem na porra da sua casa. Não é uma analogia perfeita, mas a sensação que a minha geração de escritores e intelectuais ou sei lá o quê anda me dando é de que são três da manhã e o sofá está com vários buracos de queimadura e alguém vomitou no porta-guarda-chuvas e nós estamos querendo que a festa acabe. O trabalho parricida dos fundadores do pós-modernismo foi maravilhoso, mas o parricídio produz órfãos, e não há festim que compense o fato de que escritores da minha idade foram órfãos literários durante os nossos anos formativos. Nós estamos meio que desejando que uns pais apareçam de novo. E claro que a gente não fica muito à vontade com esse desejo — quer dizer, o que é que a gente tem na cabeça? Somos assim tão covardes? Será que tem alguma coisa na autoridade e nos limites que nos seja realmente necessária? E aí vem o sentimento que nos deixa ainda menos à vontade, na medida em que vamos gradualmente percebendo que na verdade os pais nunca mais vão voltar — o que significa que nós teremos de ser esses pais."

Sim. Nossas referências estão morrendo (de velhice, de doença ou de desgosto), e agora nós, que já éramos órfãos, o somos mais uma vez, e somos nós mesmos os pais.