Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Renato Feder, não tire das crianças a chance de segurar um livro nas mãos
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Excelentíssimo Senhor Renato Feder,
Confesso que me é um pouco estranho chamar Vossa Excelência assim, já que nos conhecemos há muitos e muitos anos, em um acampamento de férias. Tínhamos provavelmente a mesma idade das crianças que serão impactadas pela medida que o senhor acaba de tomar: pela primeira vez, o estado de São Paulo está optando por não aderir ao mais antigo dos programas de distribuição de livros aos estudantes da rede pública do Brasil, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Mas veja, não é porque o PNLD existe desde 1937 que está obsoleto, muito pelo contrário: a avaliação das obras é feita por uma equipe altamente qualificada do Ministério da Educação e está em constante evolução, primando por garantir um acesso diverso, inclusivo, sem renunciar à qualidade do conteúdo.
Não sei se Vossa Excelência sabe, mas me tornei psiquiatra, além de escritora. É também como profissional de saúde mental que escrevo estas palavras, porque sua decisão de oferecer apenas conteúdo digitalizado aos alunos da educação básica da rede pública do estado de São Paulo me preocupa imensamente. Há um estudo realizado pela Universidade de Showa e publicado em 2022 pela revista "Nature" que mostra que ler em dispositivos digitais, seja celular, seja computador, modifica a atividade cerebral e a respiração de modo a diminuir a compreensão, comparando-se à leitura em papel. Sua decisão prejudicará o aprendizado dessas crianças provavelmente de forma irreversível.
Mas não paro por aí, Vossa Excelência, ainda não. Não sei se Vossa Excelência se lembra, mas desde aquela época eu amava livros, desde aquela época eu já queria ser escritora. Com a literatura, aprendi a pensar, aprendi a enxergar o outro, aprendi até a entender melhor meus próprios sentimentos. Com a literatura, me sinto comungada com a humanidade, e foi lendo que aprendi a escrever. Meu apreço pelos livros foi certamente incentivado pela presença massiva desses objetos em minha casa. O senhor, ora, com sua decisão, está privando inúmeras casas —num país que já sofre com baixos índices de leitura— de um dos poucos contatos com o livro físico, esse dispositivo milenar, inultrapassável, através do qual a humanidade vem registrando, elaborando, inventando, descobrindo sua história. Imagine o senhor uma criança que perderá a única possibilidade de segurar um livro nas mãos.
Não quero nem mencionar aqui o impacto que sua decisão terá no mercado editorial, pois o senhor, como administrador, com certeza já sabe que cerca de metade desse segmento é composto por livros didáticos, mas quero trazer ainda um último ponto. O senhor argumenta que o PNLD era diverso demais, o que se resolveria com um material padronizado. Pois eu entendo, Vossa Excelência, que a diversidade é uma riqueza, não um problema. Não é concebível que uma única equipe dê conta de produzir material que abranja a multiplicidade do que uma escola deve ensinar, principalmente porque escola não ensina só conteúdo, ensina justamente essa própria pluralidade que o senhor está eliminando.
Antonio Candido já disse que a literatura é um direito. O PNLD é a possibilidade de garantia desse direito, e o senhor está tirando essa garantia de mais crianças do que nós, quando crianças, conseguíamos imaginar existirem no mundo.
Sei que Excelentíssimos Senhores não são abraçáveis, então deixo à menina que fui o papel de me despedir de você, do menino que você foi, olhando em seus olhos, apelando para que reconsidere a decisão.
Natalia Timerman
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