Natalia Timerman

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Opinião

O passado da morte impune não passa nunca e tem sobrevivência na literatura

O suicídio de uma aluna que se lançou do prédio da faculdade e a dor imaginada no rosto de sua mãe levam uma professora a pensar na morte, a percorrer a história da morte em sua vida. Ela então volta a sua infância e à lembrança de um assassinato brutal: Soeli Volcato, de 13 anos, foi morta e estuprada (provavelmente nessa ordem) em uma pequena cidade no interior de Santa Catarina, e os criminosos nunca foram punidos. Seu nome é fictício, mas sua morte é real. "Toda uma constelação de mães" encadeia a série de lembranças que a narradora compreende como delirante: "toda essa lucidez, uma trama de coincidências, essa visão clara da infância só se dá fora da consciência, no sonho ou no delírio."

Mas não há nada que escape da consciência dessa que narra "Um Crime Bárbaro", de Ieda Magri, lançado em 2022 pela Autêntica Contemporânea: nem os limites da investigação que empreende mais de 40 anos depois do ocorrido, nem os limites da ficção, para se abordar uma realidade como essa. "Mas de repente tudo mudou. Foi o mundo que mudou, e fui eu. Voltamos várias casinhas, e o elogio da ficção ficou banalizado diante da mentira pura e fria que se faz firmar como verdade."

Ela viaja para a cidade natal, conversa com parentes, descobre que o crime ficou impune, mas nunca foi esquecido, pairando ainda como ameaça até à própria narradora, que é dissuadida de tentar completar as lacunas dessa história. Mas não é apenas a história da morte Soeli Volcato que ela precisa contar: é também a própria, a de sua infância, de suas origens; é também a dos rincões do Sul, de uma terra que se mantém no tempo de antes do asfalto, mesmo que o asfalto tenha chegado e trazido junto de volta o possível assassino.

E é também, ainda, a história do próprio livro que precisa ser contada, um livro que se discute, que não esconde as próprias costuras, e se erige a partir da necessidade. "O passado é passado" e "no passado não se mexe" são frases que a narradora escuta muitas vezes. Mas o passado de uma morte impune não passa nunca, muito menos neste mundo, o da realidade em que o livro de Ieda se funda, em que a cotidianidade do risco se torna eco e repetição de mortes anteriores.

"Nunca era possível transformar aquele homem que voltou como operário da empresa que construía o asfalto, meio velho, adoecido, no assassino cruel de uma menina de 13 anos. (...) 'É um homem comum. Não é um assassino'". A frase poderia se inverter, se recombinar, naquelas terras em que as meninas precisam se comportar bem, em que os tios mesmo assim se sentem no direito de levantar os vestidos de suas sobrinhas — terras que são as nossas, em que um homem comum está embebido na permissão como que dada de fazer do corpo de uma mulher, do corpo de uma menina, do corpo de uma fêmea, o que ele quiser.

A literatura de Ieda Magri desponta como sobrevivência: a necessidade de escrever se sobrepõe ao silêncio. Ela é uma mulher, e está viva, afinal.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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