Natalia Timerman

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Opinião

Para os homens, ficar pelado faz parte da vida em uma faculdade de medicina

Quando vi pela primeira vez as imagens borradas dos estudantes de medicina com as calças arriadas, a imagem nítida, ainda que bem mais antiga, dos meus colegas de turma logo me veio à mente. Os calouros eram obrigados a puxar o grito da faculdade de cima dos bancos com os paus à mostra. Ficar pelado, para os homens, era cotidiano, quisessem eles ou não, tivessem ou não orgulho de seus membros. Talvez por isso tenha levado meses para que a incredulidade sobre o episódio da masturbação coletiva viesse à tona: trata-se apenas do dia a dia de uma faculdade de medicina.

Que uma das músicas da minha faculdade entoasse que medicina não é coisa para menina não depõe apenas contra a faculdade (nós, mulheres, gritávamos por cima do coro o nosso "já é coisa para menina", numa tentativa de remediação e de acusação do absurdo, afinal de contas, estávamos ali, e, se não me falha a memória, na minha turma, formada há 18 anos, as mulheres já eram maioria) — depõe também e, mais uma vez, contra a estrutura machista na qual está assentada a nossa sociedade como um todo. O verso da canção é só mais uma ínfima manifestação do problema que leva os salários das mulheres serem generalizadamente menores que os dos homens para as mesmas funções; o mesmo que faz com que os índices de estupro e feminicídio continuem alarmantes; problema antigo, enraizado, cotidiano, avassalador.

Que a punição exemplar dos estudantes não sirva somente para alimentar a fogueira do ódio. A violência é uma cadeia que se retroalimenta: toda pessoa que a perpetra reproduz e inculca a outrem a própria dor. Toda, ou quase toda, porque o privilégio desbalanceia totalmente essa equação. Mas as coisas não são assim tão simples dentro de uma faculdade de medicina, onde altíssimos índices de suicídio são resultado de um cotidiano de pressão acadêmica, desgaste emocional, privação de sono somados ao contato direto com o corpo e com a morte. Dissecar um cadáver é uma experiência inesquecível e que pode ser muito perturbadora, afinal.

Não estou aqui para defender o indefensável: importunação sexual é crime e deve ser tratada como tal, todos os dias, até que um grupo de homens não tenha mais como achar boa ideia baixar os calções na frente de todo mundo e simular masturbação. Mas talvez apontar o micropênis alheio como motivo de chacota seja reproduzir a mesma lógica fálica que ensejou a ação, e colocar todos e apenas os médicos no mesmo balaio seja colocar gasolina num fogo alimentado pela lenha da sociedade inteira. Que a revolta da vez não se esgote em si mesma, mas que seja um passo efetivo no caminho da mudança em direção a um mundo seguro para as mulheres.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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