Natalia Timerman

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Opinião

Chegou o dia de diminuir a biblioteca: não lerei todos os livros que quero

Chegou o momento, enfim, de começar a diminuir minha biblioteca, ao invés de aumentá-la. A descida da montanha mágica, a segunda metade da vida, quando os livros já se multiplicaram o suficiente para constatar que não terei tempo de lê-los nem espaço suficiente para guardá-los.

Aqui, é preciso pontuar que se desfazer de livros é um privilégio gigante num país em que pouco se lê, um país que tem dez milhões de pessoas passando fome. Participei este ano de uma mesa com a jornalista e escritora Esmeralda Ribeiro e ela se contrapôs à minha fala sobre a pilha de livros que se junta ao meu redor. A vida dela fora bem diferente, como contou no palco da Feira do Livro: em sua infância, ela simplesmente não tinha acesso a eles.

Eu, que era uma menina de classe média, tinha acesso quase irrestrito. Meus pais economizavam em roupas e brinquedos, mas de uma livraria eu podia levar para casa o que quisesse, um sim infinito que provavelmente originou minha compulsão por comprar livros, que se acumulam em cada canto de onde vivo.

É a realidade do tempo e do espaço que me impõe os limites que meus pais não puderam ou quiseram dar. É chegada a hora de me conformar com o fato de que não lerei todos os livros que quero, nem sequer os que se derramam das estantes da minha casa. É preciso escolher os que ficam.

Começo a percorrer lombada por lombada e as dúvidas começam a chegar. Quais os critérios de doação? O que fazer com quatro edições de "Macunaíma", uma mais bonita que a outra? Qual escolher? Como escolher? Pelo posfácio? A que já foi lida e está anotada? É mesmo necessário escolher?

Vou lembrando da história de cada um dos volumes que toco com a ponta do dedo. A etiqueta da livraria; o ano em que li, anotado na folha de rosto. Os livros que emprestei da casa dos meus pais e nunca mais devolvi — eu os tirei da estante já com certeza de que não voltariam para lá. Os livros com dedicatória. Aqueles dedicados à minha mãe, que hoje por conta do Alzheimer não consegue nem dizer o próprio nome. O nome dela anotado com a data na folha de rosto, nos anos antes dela se casar com meu pai. Por que ela parou de anotar o nome nos livros depois? Eles não seriam mais só dela? Estaria ela precisando nomear seu mundo, demarcar o que lhe pertencia, o que fosse seu? Com esses, eu fico. Um pedaço da história da minha mãe que hoje tento juntar.

Separo para doar livros de autores que desconheço completamente, vencedores de prêmios, com orelhas de Jorge Amado ou Moacyr Scliar, que ficaram. Poucos, muito poucos, ficam.

Penso no dia do lançamento de cada um desses livros, na alegria dos autógrafos em décadas longínquas, muitos dos autores hoje já mortos. Suas palavras já mortas nos livros fechados, e olhar para as manchas nos livros, para a poeira, diminui o tamanho de qualquer dor vinda de escrever, de publicar, de uma vida entre os livros.

Com sorte, no futuro, o livro de um escritor continuará na estante, tendo escapado da sacola de doações. Com sorte meus livros escaparão. Ou talvez a sorte seja a sacola, outros ares, leitores com mais avidez por aquelas histórias. Ou ainda que simplesmente haja estantes, que haja um mundo para os livros, um mundo habitável para os humanos e para o que as pessoas escreveram e escreverão.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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