Natalia Timerman

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Opinião

O que é ser judeu? Fragmentos a partir de 'Ellis Island', de Georges Perec

"eu não sei exatamente o que é ser judeu
qual o efeito em mim de ser judeu"

Quando li esses versos de Georges Perec em "Ellis Island", livro inclassificável sobre a pequena ilha de Nova York por onde chegaram, de 1892 a 1924, 16 milhões de imigrantes nos Estados Unidos, me detive. Precisei reler, e reler, e reler, escutando ecos de perguntas não feitas. Perguntas que, nos últimos meses, me acordam à noite, tanto gritam quanto calam. O que é ser judia? O que, para mim, é ser judia? Há uma resposta a essa pergunta que não seja pessoal?

*

"eu poderia ter nascido, como primos próximos ou
distantes, em Haifa, em Baltimore, em Vancouver
poderia ter sido argentino, australiano, inglês ou
sueco"

Eu, Natalia Joelsas Timerman, nasci no Brasil. É do Brasil que escrevo e penso e sinto, sou uma judia brasileira, que está longe de qualquer guerra declarada, ainda que as guerras me afetem profundamente e ampliem em mim o espaço no qual ressoa a pergunta: o que é ser judia?

*

Minha mãe foi se tornando uma judia cada vez mais ortodoxa ao longo da vida, na proporção inversa a que eu ia me afastando do judaísmo, até que o Alzheimer e a deterioração das suas sinapses fossem, pouco a pouco, impedindo-a de seguir os rituais. Era quando ela mais sofria: quando se dava conta, no que sobrava de sua memória, em lapsos ao revés, de que não conseguia se lembrar de acender as velas, de separar carne e leite, de lavar as mãos daquele jeito específico antes das refeições.

Ela não me parecia menos judia então, mas se sentia menos judia, e se entristecia, se desesperava sem nada dizer. Um dia, cheguei para almoçar na casa dela e, sobre a mesa, havia uma bandeja de comida japonesa, dentro da qual se destacava um camarão (os judeus que seguem a kashrut não podem comer frutos do mar). Olhei para ela. Não era possível que ela não percebesse. Não era possível. E eu, que me ressentia tanto de suas práticas religiosas, práticas que me pareciam tão excessivas antes, práticas que pareciam afastar minha mãe de mim, comi o camarão para proteger sua escolha anterior.

*
A primeira vez que me senti judia, verdadeiramente judia, não foi no meu bat-mitzvá, nem no Shabat, nem quando meus filhos fizeram brit-milá, não foi nas aulas da adolescência em que aprendi algumas palavras em hebraico. A primeira vez que me senti judia foi quando meu pai morreu. Eu segui os rituais fúnebres passo a passo, me sentindo amparada não por Deus, mas pelos que vieram antes de mim.

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*

É preciso cuidar quando se diz "nós, judeus". Ser judeu é múltiplo demais para caber dentro de um só "nós".

Sigmund Freud era judeu, assim como Philip Roth, Clarice Lispector, Susan Sontag, Hannah Arendt. Sou judia assim como Walter Benjamin. Karl Marx, Primo Levi, Paul Auster. Também é judeu Yigal Amir, o assassino de Itzhak Rabin — e nunca me soou tão terrível a familiaridade das rezas em hebraico quando as ouvi proferidas em "O Último Dia de Yitzhak Rabin", filme de Amos Gitai.

*

"não é só dizer: dezesseis milhões de emigrantes
passaram por Ellis Island em trinta anos

mas tentar imaginar
o que foram essas dezesseis milhões de histórias individuais,
essas dezesseis milhões de histórias idênticas e diferentes
daqueles homens, daquelas mulheres e daquelas crianças expulsos"

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Italianos, irlandeses, suecos, alemães, austríacos, húngaros, russos, ucranianos, ingleses, noruegueses, gregos, turcos, holandeses, franceses e dinamarqueses: dentre os milhões, há milhões que não são judeus. Segundo os versos de Perec, a ilha "pertence a todos aqueles que a intolerância e a miséria
expulsaram e ainda expulsam da terra onde cresceram"

*

intolerância
miséria
expulsão
(o barulho das explosões que não escuto)

*

Perec sabia que não há uma única forma de ser judeu.
Ele diz:

"o que para mim se encontra aqui
não são de modo algum marcos, raízes ou rastros,
mas o contrário: algo informe,
no limite do dizível,
algo que posso nomear clausura,
ou cisão ou corte,
e que para mim está ligado, de uma forma muito íntima
e muito confusa, ao próprio fato de ser judeu"

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Sobre o diretor de cinema francês Robert Bober, que teve a ideia de fazer o filme para a narração do qual Perec escreveu "Ellis Island", ele diz:

"ser judeu, para ele, é ter recebido, para depois passar
adiante, todo um conjunto de costumes, de modos de
comer, de dançar, de cantar, palavras, gostos, hábitos

e é, acima de tudo, ter a sensação de compartilhar esses
gestos e ritos com outras pessoas, para além das fronteiras e das nacionalidades, compartilhar essas coisas que viraram raízes, sem jamais esquecer que são,
ao mesmo tempo, frágeis e essenciais,
ameaçadas pelo tempo e pelos homens"

*

Ainda que em alguns momentos eu me identifique com a visão de Bober e em outros com a de Perec do que é ser judeu (num movimento pendular, como ouvi de Benjamin Seroussi), eu me identifico mais com a de Perec, me identifico com quase tudo quando ele diz:

"não é um sinal de pertencimento,
não está ligado a uma crença, um religião, uma prática,
um folclore, uma língua;
seria antes um silêncio, uma ausência, uma
interrogação, uma indagação, uma vacilação, uma inquietude:

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uma certeza inquieta,
por trás da qual paira outra certeza,
abstrata, pesada, insuportável:
a de ter sido designado como judeu,
e, uma vez judeu, vítima,"

E aqui de repente diante da palavra "vítima" eu não consigo me identificar. Não mais, não completamente. Não agora.
(Ainda que um país não seja seus habitantes; ainda que um governo não seja um país.)

*

Segundo a visão de Perec, ser algoz seria, então, se distanciar de ser judeu.

Mesmo que meu amigo Fabio Weintraub tenha ponderado que, desde Abraão e Isaac, a dialética do algoz e da vítima está posta para o judaísmo — Abraão sendo vítima de Deus e algoz de Isaac — neste momento, aqui, eu prefiro continuar a perguntar o que é ser judia com certa distância das palavras "algoz" e "vítima".

*

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Neste momento, aqui (os sons das explosões que não escuto),

"(...) poderia parecer irrisório, fútil
ou sentimentalmente complacente querer evocar de novo
essas histórias já tão antigas

mas, ao trazê-las à tona, tivemos certeza de ter feito
ressoar as duas palavras que estavam no cerne dessa
longa aventura: duas palavras moles, inapreensíveis,
instáveis e fugidias, que vivem enviando uma a outra
suas luzes vacilantes, e que se chamam errância e
esperança."

*

Quando as certezas se tornam antigas, quando as certezas poucas que havia expiraram, errância e esperança talvez não sejam mais palavras suficientes como cerne, como resposta, como pergunta (o que é ser judia?).

Eu só quero que as explosões cessem, que todos voltem para casa, que haja casa para onde todos possam voltar. Mas da diáspora, nada que eu queira, diga ou faça vai deixar de ser gesto ínfimo, ou apenas palavra.

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***

Todas as citações deste texto foram extraídas de "Ellis Island", de Georges Perec, publicado no Brasil pelo Círculo de Poemas com tradução de Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty.

O Círculo de Poemas é um clube de assinatura fruto do encontro das editoras Fósforo e Luna Parque, no qual você recebe todo mês dentro de uma caixa duas preciosidades sob a forma de livro e plaquete.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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