Natalia Timerman

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Opinião

Ataques virtuais também matam, usando apenas dedos que digitam e clicam

Este não é um texto sobre guerras. Não é um texto sobre guerras, mas é um texto sobre a violência. Uma violência bem mais próxima, cotidiana, em que se pode destruir uma pessoa sem sujar as mãos, usando apenas os dedos, que digitam e clicam. Uma violência que serve ao poder inumano do algoritmo, que por sua vez serve às corporações por trás das redes sociais, e aos seus donos, que, quanto mais ódio, mais lucram. Porque o ódio viraliza, cresce, o ódio engaja.

Estou falando da violência sem som, inicialmente sem sangue, que pode fazer parte do que se habituou a chamar de disputa de narrativas, ainda que na maior parte das vezes essa disputa legítima não se valha da violência. Estou falando de ataques virtuais. Aqui, serei muito precisa: não se trata de cancelamento, cancelamento é um termo equivocado, no mínimo insuficiente, que dá a ideia de uma simples recusa. Trata-se de mais que uma recusa, trata-se da tentativa (que pode chegar a ser efetiva) de destruição.

É inesquecível a sensação de pesadelo que pode ser decomposta em angústia e pernas trêmulas, sem a firmeza do chão. Um apertado túnel no qual se entra, onde os ouvidos só conseguem escutar o palpitar abafado do próprio coração e a vida comum fica longe, o exato oposto da paz. Atravessei esse túnel: era impossível comer, era impossível dormir, e dentro do pesadelo havia vergonha, medo, culpa, como se eu tivesse cometido a maior das atrocidades. Mas eu havia simplesmente escrito um texto. Um texto que não pretendia ofender ninguém, mas hoje, nas trincheiras da adesão total e da aversão à diferença, a discordância não gera debate, mas alimenta um mecanismo perverso em que se deixam de lado as ideias para atacar seus autores, ou em que uma foto ou uma notícia falsa podem ser suficientes para mudar o rumo de uma vida. Um print munido de uma interpretação equivocada ou apenas leviana pode significar jogar uma pessoa na fogueira.

Nunca é demais lembrar que o debate público inclui e se beneficia da discordância, e que um texto precisa e pode ser criticado. Mas criticar, discordar, dialogar, debater, é bastante diferente de atacar, e os ataques às vezes acontecem sem que a vítima tenha feito absolutamente nada. Vaca, puta, nazista, antissemita, judia, escrota e infindáveis variações — além da coleção de misoginias entre as quais mal-comida, mal-amada, burra e os inúmeros comentários sobre minha aparência — se associaram milhares de vezes ao meu nome e à imagem do meu rosto no antigo Twitter por alguns dias. Ameaças de processos, desejos proferidos de morte, ameaças de invasão das minhas contas por hackers, vasculhagem de textos antigos meus, de fotos antigas de outras redes sociais, deturpação do que escrevi e, óbvio, nenhum link do texto propriamente dito, porque a intenção nunca foi o diálogo, apenas a lacração em cima da imagem alheia, e aqui é importante frisar: a imagem e o nome de uma mulher, jogada na fogueira por homens.

Com tanta gente atacando de tantos lados, é quase impossível não duvidar de si. Meus amigos e pessoas mais próximas diziam: você não fez nada de errado. E era muito importante ouvir isso, mas o alívio momentâneo me lançava outra questão: se eu tivesse de fato me equivocado, se eu tivesse escrito algo que não correspondesse à realidade, ou mesmo se eu tivesse escrito algo ofensivo, os ataques se justificariam? Para onde vamos se é mais necessário que nunca dizer em voz alta que não, nenhum ataque se justifica, mesmo que seja virtual?

As pessoas próximas também diziam que eu me acalmasse, vai passar: daqui a pouco escolhem outra pessoa. Mas então meu alívio é necessariamente a dor de alguém mais? Vamos naturalizar a esse ponto o absurdo, vamos mesmo naturalizar a violência?

Neste exato momento, alguém está sendo massacrado por uma multidão de perfis e robôs na internet. Me recuso a normalizar essa lógica, ainda que, no auge da angústia, saber que logo o alvo não seria mais eu me aliviasse. Eu torcia intimamente para que outra notícia tirasse o foco de mim, eu só queria que o pesadelo acabasse. O meu pesadelo. Mas o pesadelo de um só acaba quando acabar o de todos. Quando a possibilidade do pesadelo for extinta.

Nada, nada, absolutamente nada justifica nenhum tipo de ataque coletivo a alguém.

No texto que desencadeou os ataques, eu dizia sentir medo; eu expus uma vulnerabilidade, pois é assim que escrevo, a partir do que me falha. Escrevo a partir da minha impotência. O que aconteceu foi que o medo se concretizou. E ao mesmo tempo não, pois era só tirar a cara do celular que o mundo ao entorno continuava existindo normalmente, ainda que o tormento impedisse que eu estivesse inteira nele.

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Nas primeiras horas, alimentei o paradoxo. Verificava constantemente as menções a mim, contrapunha as ofensas à calma que a realidade ostentava. E o paradoxo era também que eu estava sendo submetida ao ódio puro de pessoas que nunca me viram, enquanto também estava cercada de amor. A pele, o olhar, o calor do meu companheiro, o abraço dos meus filhos, a voz deles — e o momento de maior dor foi ver a imagem das mãozinhas do meu menor teclando uma máquina de escrever, minha foto de capa do Twitter, reproduzida na propagação do ódio a mim. Cada mensagem de apoio de pessoa conhecida e desconhecida, cada escritor que se posicionou a meu favor, cada gesto, esse amor me salvou, e eu sou psiquiatra, sei das marcas indeléveis que ataques assim podem deixar na vida de uma pessoa. As pessoas podem adoecer, podem simplesmente não suportar. As pessoas podem chegar a preferir a morte, e não foram casos isolados os que resultaram em suicídio, temos visto recentemente que não.

Um ataque coletivo não é permitido na realidade, fora do mundo virtual. Por que as redes sociais não são obrigadas a ter mecanismos que o previnam e barrem? "Comece a falar sobre qualquer estratégia de remoção de conteúdo ou prevenção contra discursos misóginos e será objetada a respeito da liberdade de expressão", escreve Mariana Valente em seu importante "Misoginia na internet", publicado recentemente pela editora Fósforo.

Nenhuma das muitas denúncias que fiz foi acatada. Nada do que me disseram, nenhuma ameaça, nenhuma conclamação à minha morte feria as políticas da rede. O perfil descola o rosto da pessoa e suspende o apelo que, segundo Emmanuel Levinas, diz não matarás. A internet funciona sob outros mandamentos; a internet eleva e multiplica o pior do humano.

Cheguei a pensar que, depois de ser atacada ferozmente por ter escrito uma coluna, só me restaria escrever um texto de despedida. Mas eu escrevo. Eu pego a ameaça e o medo e escrevo. É com as palavras que consigo agarrar o sentido, e o sentido é o escape provisório e ínfimo da face que me chega do horror, porque o horror não tem sentido. E eu quase deixei de escrever. Mas não. Aqui continuo. Ainda que pessoas que morreram por não terem suportado ataques virtuais não possam mais continuar.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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