Genocídio versus genocídio: alguns dos problemas da fatídica fala de Lula
Pela primeira vez uso maiúsculas, desde que comecei a escrever colunas: HÁ UM GENOCÍDIO EM CURSO EM GAZA. Mais de 29 mil pessoas foram mortas, muitas delas crianças, e outras milhares foram gravemente feridas. Eu não relativizo esse genocídio. Um cessar-fogo é urgente, prioritário, vou ser redundante aqui: nada importa mais agora do que o fim da guerra no Oriente Médio, a desocupação dos territórios de Gaza e da Cisjordânia e o fim do Apartheid ali instaurado. A necropolítica teorizada por Achille Mbembe continua sendo colocada em prática diante de nós, terrivelmente agudizada. Começo por aqui porque só consigo escrever uma palavra por vez, assim como só uma palavra pode ser lida a cada vez. Então começo por essas.
A má notícia é a de que minhas palavras não bastam. Pior notícia ainda é a de que nem as palavras do presidente Lula bastam. Espero sinceramente estar enganada, gostaria que as palavras dele tivessem o poder de por fim à guerra, mas ao que me parece até o momento, elas têm servido apenas para acirrar a polarização da disputa de narrativas, armar a extrema-direita de argumentos e fomentar o antissemitismo, mesmo que a intenção não tenha sido essa.
Eu nunca fui a Israel. Eu não votei em Benyamin Netanyahu; mesmo se pudesse, jamais votaria. Eu execro seus crimes de guerra, e sofro também pelo ataque tenebroso do grupo terrorista Hamas (pois, diferente das palavras, cabem dois sentimentos num só peito, cabem dois e muito mais). Mas nada do que eu faça pode mudar isso minimamente. Eu não sou responsável por isso.
É o imaginário que fundamenta racismos e outros preconceitos. É o imaginário, dado, latente, que determina a necessidade de um esforço para se reconhecer e desmontar um preconceito, presumindo-se de que o intuito seja esse: deixar de ser preconceituoso e de exercer preconceitos.
Aqui, cito David Baddiel no livro "Os judeus não contam": "É um pressuposto básico dos progressistas que aqueles que não experienciam racismo precisam escutar, aprender, aceitar e não contestar quando os outros falam por suas experiências. Exceto quando se trata dos judeus. Não judeus, inclusive os progressistas, continuam tranquilos em contar aos judeus se aquilo que foi dito sobre eles foi de fato racista."
Fazer uma distinção histórica não é relativizar um genocídio. É curioso que muitas das esquerdas, que costumam ser tão criteriosas quanto a essas distinções, agora dizem que as palavras não podem importar mais que as pessoas. É óbvio que não podem. Curioso também é que continuam dizendo isso com... palavras. E o que podemos oferecer agora, além de palavras? O que eu, judia brasileira, poderia oferecer além disso?
Sou brasileira por acaso, como tantos outros judeus. Parte da minha família está no Uruguai, há alguns primos nos Estados Unidos, outros em Israel. Vocês já conhecem a história: as expulsões dos países da África Setentrional e do Oriente Médio, a fuga dos pogroms e do antissemitismo que se perpetuou pelo período soviético, a fuga do nazismo, e então nossos pais, avós e bisavós vieram para cá e para outros países.
Seguimos com o que temos às mãos, seguimos com as palavras: se for mesmo necessário ou proveitoso ou possível comparar mortes; se for possível comparar a terrível, condenável e injustificável (repito: INJUSTIFICÁVEL) morte de tantas crianças inocentes em Gaza e de seus pais, também inocentes, com a morte de seis milhões de judeus; se for de alguma utilidade comparar as mortes por bombas com as mortes na câmara de gás, para os quais os judeus eram levados em trens burocraticamente organizados simplesmente porque eram judeus, e não para ocupar seu território — porque já não tinham um território —, não para escravizá-los, mas porque o imaginário da época ditava que deveriam morrer (importante ressaltar que ocupação de território e escravização NÃO AMENIZAM NEM JUSTIFICAM GENOCÍDIOS); bem, se é mesmo possível comparar o genocídio em curso em Gaza com o Holocausto (mero sacrifício, como diz esse terrível nome), por que, enfim, se compara o perpetrador de um com a vítima do outro se eles simplesmente não coincidem?
Israel não é igual aos judeus. E mesmo dentro de Israel: muitos israelenses desaprovam e protestam contra os crimes de guerra de Benjamin Netanyahu e se mobilizam por uma solução pacífica do conflito. Uma das ideias que pode estar subjacente à comparação do genocídio em Gaza com o Holocausto, tantas vezes proferidas nos últimos meses, é a de que os judeus não teriam aprendido nada com o Holocausto; como explica o Instituto Brasil-Israel, o genocídio, segundo essa concepção equivocada, seria uma "lição" ou "castigo" que não surtiu efeito e, fica subentendido, não foi suficiente.
O nome de tudo isso, que cada um diga a si mesmo em silêncio. Quando não há disposição para escutar, tampouco há maiúscula que baste.
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