Drogas: já devíamos saber que criminalizar perpetua encarceramento em massa
Nos oito anos em que trabalhei num hospital penitenciário de São Paulo, tive diante dos olhos o que já sabemos: racismo prende e prisão mata. (O silogismo lamentavelmente funcionaria excluindo prisão da sentença: racismo mata).
Já virou quase um clichê dizer que a prisão pode ser mais deletéria à sociedade do que os crimes que levam a ela. "Escola do crime" é das expressões mais batidas que há: por trás das palavras, indivíduos com diferentes rostos e histórias, sujeitos a brigas de facção, superlotação das cadeias, acesso restrito a tratamentos e dispositivos de saúde, vivendo um cotidiano perpassado pela restrição de direitos quando muitas vezes estão lá justamente porque o Estado deixou de garantir direitos básicos, como moradia e alimentação.
Mas mesmo um clichê como esse os nossos senadores insistem em ignorar ao aprovarem esta semana a PEC 45/2023, que, se aprovada na Câmara, institui ser crime a posse ou o porte de qualquer quantidade de droga. A diferenciação entre traficantes e usuários será subjetiva, e não é difícil adivinhar que, no Brasil, isso significará que os primeiros continuarão a ser pobres e pretos.
Estamos retrocedendo na discussão com relação às drogas. Substâncias psicoativas várias foram usadas por indivíduos de todos os tempos, em todas as sociedades, e a óbvia verdade é que continuarão sendo, por motivos diversos que não cabe discutir aqui.
Criminalizando-as, nos afastamos ainda mais da possibilidade de cuidado de seus usuários, quanto mais de sua legalização, que nos permitiria regulamentá-las, informar a população acerca delas, combater o tráfico, diminuir os gastos com o encarceramento desmedido e arrecadar com imposto sobre a cannabis, por exemplo. Não chegamos nem perto de considerar as evidências científicas de que a legalização das drogas não aumenta seu consumo e nem mesmo seu uso problemático. Diante de uma moral duvidosa, argumento algum alcança.
No livro Desterros - histórias de um hospital prisão, lançado em 2017 pela editora Elefante, escrevi que, depois de algum tempo escutando a história daquelas pessoas, comecei a perceber elementos que se repetiam. "Era possível quase adivinhar o que viria depois naqueles relatos recorrentes, como se cada história, apesar de única, contivesse os mesmos ingredientes."
Os ingredientes continuam os mesmos. Interesses políticos, dinheiro, preconceito e ignorância farão com que detrás das grades estejam os usuários e traficantes que a ponta do nosso judiciário está acostumada a condenar, enquanto os outros, os brancos e ricos — até mesmo, talvez, alguns dos que votaram pela criminalização — poderão continuar a fumar sossegados seus baseados em suas noites e em suas festas.
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