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Opinião

Carta a uma mãe que já não fala

Mãe,

É um desvio, um paradoxo, um erro, talvez, o fato de eu publicar para tanta gente ler uma carta para você. Porque você já não consegue ler; você já quase não responde, ainda que provavelmente escute — uma mudança sutil na sua expressão, ou seu olhar que, para o meu imenso alívio, se detém no meu rosto, mesmo que por instantes apenas; o dia em que você acompanhou discretamente com a voz a melodia de uma reza de Shabat, tudo isso me diz que sim, você me escuta, você nos escuta, você está aqui com a gente.

Mesmo assim escrevo, escrevo para você: porque talvez toda escrita seja um desvio, uma insistência, o desperdício necessário, esforço sísifico, para se buscar o sentido inexistente de existir. Mesmo que esta carta não chegue ao destino certo (ainda que sim, toda carta encontre o seu destino).

Você se obstina em continuar viva, mãe, e eu te agradeço por isso. Eu aprendo tanto com esse gesto seu, o gesto de continuar respirando, se deliciando com o sabor da comida, dormindo e depois acordando. Sua vida hoje com Alzheimer é uma insistência; tenho descoberto, juntando as peças de sua história agora muda, que na verdade sempre foi. Acho até que toda, toda vida é uma insistência.

Eu já escrevi isso antes — cada vez me convenço mais de que um escritor está sempre escrevendo um mesmo texto vida adentro (ou vida afora): você ainda está aqui, e sinto tanto a sua falta. Sinto falta de quando eu podia ser filha, embora não tenha deixado de ser; você me presenteia com o paradoxo, com a pergunta, com o significado de corpo, de cheiro, de abraço.

E foi você quem me ensinou a abraçar - e que o abraço precisa ser de verdade, peito com peito, braços firmes dando a volta inteira no outro corpo, e ah, o alívio que vem depois de um abraço, cada um um outro de si e um pouco do outro. Você me ensinou a cuidar, a chorar, foi você que me ensinou que um filho se enche de beijos.

Tenho encontrado suas amigas, mãe, tenho tentado continuar a conversa que nunca tivemos. Você também me ensina o que é tempo, o que é mãe, o que é falta (e mãe e falta são conjuntos que, se tudo der certo, se interpenetram); você me ensina que a vida também é arrependimento, porque não sabemos o futuro, e eu não sabia que te perderia tão cedo, ainda que você ainda esteja aqui.

Você continua me ensinando o que é amor, mãe.

Feliz dia. Logo chego para te dar um abraço.

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Sua filha,

Nati.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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