Natalia Timerman

Natalia Timerman

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

'Bebê Rena': o estranho não está longe, mas em nós

"Bebê Rena" é um título instigante para uma série, quase incômodo, de uma estranheza que nos interpela, como provavelmente toda estranheza. O nome vem a calhar, pois a série trata justamente do estranho, assim como dos limites pouco definidos entre o singular e o patológico, o impulso e a violência. Um estranho que, afinal de contas, não está longe, mas em nós: é quase impossível não atravessar os sete episódios sem se perguntar se você alguma vez já passou perto do papel da vítima, mas também da estalqueadora.

Talvez por isso a minissérie criada e protagonizada por Richard Gadd seja tão mobilizadora. E também porque é feita da crueza de quem coloca para fora as vísceras, de quem procura se entender examinando o próprio avesso. O protagonista não se furta a denunciar a si próprio em busca das várias facetas da verdade possível, e a série não deixa de ser uma confissão. Podemos, com subsídios oferecidos pela própria narrativa, até duvidar de suas intenções: é reparação ou autoflagelo o que alguém que ama se odiar pretende ao se acusar? A resposta poderia ter alguma importância na realidade, mas não na arte, mesmo que a arte se baseie na realidade.

Richard Gadd é um ator que interpreta a si mesmo. Finge que é ele próprio, vive como se estivesse fingindo, e no entanto não está. Tudo ali é inventado, tudo ali é verdade: o roteiro é inventado, mas verdadeiro; o sentimento de Martha é inventado, mas verdadeiro. (A personagem que criamos para nós todos os dias na internet é inventada, mas verdadeira.)

Bebê Rena, com atuações impecáveis, é mesmo estranha, mas também enternecedora e triste, da tristeza de quem queria fazer comédia, mas só pode fazer drama. Uma tristeza que extravasa a série e dimensiona nossa falta de saída, pois que mundo é este em que uma turba estalqueia a estalqueadora e outras pessoas que acreditam terem inspirado os personagens? Se os limites entre real e ficção nunca estiveram tão borrados, o anúncio, logo no início, de que se trata de uma história real não é uma autorização para que a vida das pessoas seja invadida, para que a questão principal da série seja colocada em prática.

O enredo à primeira vista é simples: interpretada por Jessica Gunning, Martha é uma mulher com prováveis transtornos psiquiátricos que se apaixona por Donny e passa a enviar a ele incontáveis mensagens todos os dias. Seu delírio é acreditar que ele retribui a paixão, um delírio que, no fundo, flerta com a verdade. Na primeira camada, ele permitiu a aproximação por pena dela; na segunda, por pena de si, e a dificuldade em impor limites vem, afinal de contas, quase sempre da necessidade de ser amado.

Em alguns momentos, Donny tenta adentrar o delírio para, de dentro, fazê-la cessar. Ele argumenta que só assim ela não estragará a história que eles viveram. Em nome da preservação da história inexistente, Martha quase consegue parar de importuná-lo; mas às vezes se estraga uma história depois do fim porque sua preservação, mesmo como memória, talvez seja um apelo forte e arriscado demais. A questão é que não havia história, ou pelo menos não uma história convencional de amor.

Muitas vezes se confunde o afeto da violência com amor, mas amor e violência são conjuntos excludentes, ainda que entre ambos possa haver semelhanças. Uma delas é a transmissibilidade, e aqui a violência ganha do amor. A violência é uma cadeia, o violador quase sempre foi violado por alguém que por sua vez também o foi. A violência é o que há de mais contagioso e transmissível, incessante desde o início dos tempos, e está entre os grandes desafios da humanidade compreender o fascínio que ela exerce, seu caráter central, às vezes tão estruturante quanto o próprio amor. Quem sabe encarando o apelo que a violência exerce em nós possamos começar a pensar em interromper sua reprodução, tanto no âmbito individual quanto no coletivo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.