Natalia Timerman

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Opinião

Ghosting que virou peça: quem ousa sofrer por amor em pleno século 21?

É deselegante escrever sobre a própria obra. É, sem dúvida alguma, deselegante, mas me perdoo de antemão munida de justificativa: uma adaptação é uma obra em si, outra da qual a originou.

Pois "Copo Vazio", o livro de literatura que foi recebido por muitos como um livro sobre ghosting (embora eu não conhecesse o termo quando o escrevi, e embora eu apenas suspeitasse que o perdido autobiográfico que o originou não acontecia só comigo), eis que "Copo Vazio" virou peça.

Ouso escrever este texto, que pode soar como autoelogio, porque me permito contar, antes da experiência da peça, da insegurança tenebrosa por que me vi tomada antes da publicação do livro. Encontrei na época um amigo e disse, original já aceito pela editora, que não sabia se devia publicá-lo. Como, afinal, eu ousava escrever um livro sobre uma mulher que sofre por amor em pleno século vinte e um? Pergunta que ecoava uma anterior: como mulher contemporânea, beneficiária e imbuída do feminismo, eu ousava sofrer por amor em pleno século século vinte e um?

Quem me responde a ambas, três anos após a primeira edição de "Copo Vazio" e mais de trinta mil exemplares depois, é a mulher que se sentou na plateia atrás de mim.

Era minha segunda vez assistindo à apresentação idealizada por Carolina Haddad, magnífica Mirela, no Sesc Belenzinho. Em determinado momento, ela vasculha a plateia em busca de Pedro (remetendo à cena do metrô do livro), perguntando a cada pessoa se o havia visto, o homem alto, loiro, magro, lábios finos, barba rala e olhos azuis. Pois a moça atrás de mim tinha os olhos brilhando de umidade ao balançar a cabeça dizendo que não. Ela não tinha visto por ali o Pedro de Mirela, nem o meu, nem o dela mesma.

Eu entendi naquele gesto como nunca o meu próprio livro. O livro que escrevi, e que não me pertence mais. O livro que Angela Ribeiro transformou em dramaturgia, e Bruno Perillo dirigiu, e Vinicius Neri ao lado de Carolina Haddad encenou, e Marina Caron movimentou, e Chris Aizner cenografou, e Gabriele Souza desenhou de luz, e Letícia Rocha iluminou, e Pedro Semeghini musicou, e Um Cafofo imaginou, e Anne Cerutti vestiu, e Luiza Spolti figurou, e Bruna Massarelli fotografou, e Letícia Alvez com Madu Arakaki produziu, e Marcela Horta originou, e Canal Aberto espalhou, e tanta gente então fez algo para que a moça atrás de mim e seus olhos e seu rosto e seu corpo inteiro dissessem que não, ela também nunca mais viu o rapaz que sumiu e a fez sofrer.

Eu enxerguei as letras vivas na peça, enxerguei o que já sabia, que a literatura — a literatura que escrevemos em silêncio — é viva e pulsa.

E sim. Embora bombas estejam caindo, embora exista pobreza, injustiça, desigualdade e horror, embora haja dores piores e mais dignas, provavelmente, de serem escritas e se tornarem literatura, as pessoas continuam e continuarão amando. Talvez precisem como nunca de amor, da experiência de amar e serem amadas, justamente porque bombas estão caindo e haja catástrofe, injustiça, desigualdade e horror.

E sofrer por amor talvez seja o deslocamento possível, ainda que questionável, da nossa inescapável e árdua tarefa de viver apesar (e por causa) da morte.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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