Você é uma mulher vaginal ou clitoridiana? Prefere ficção ou escrita de si?
Quando você vai, enfim, inventar, em vez de escrever sobre si? A pergunta não foi feita a mim, mas a uma amiga anos atrás e a entravou. Como se ela fosse uma escritora menor se não inventasse. Como se a ficção total fosse superior à escrita de si. Como se existisse algo como ficção total, ou como se não se tratasse de sempre, no limite, escrever a partir de si.
Inquietações foram automaticamente revolvidas pela pergunta que eu mesma já me fiz, porque tenho tanta necessidade de escrever quanto dificuldade para inventar. Pergunta que é eco de uma suposição mais abrangente, a de que a ficção é superior à escrita de si porque escrever sobre a própria vida seria uma atitude narcisista.
Há certa ingenuidade na acusação de que um escritor ou escritora que escreve sobre ou a partir do que é ou do que lhe aconteceu seja narcisista. Ela pressupõe que alguém que escreva em terceira pessoa sobre mundos ficcionais não seja acometido por algum grau do que o senso comum entende por narcisismo — ou que não seja pelo menos um pouco vaidoso.
Nestes tempos de indireta na internet, o espectro de acusações a quem escreve pode ir da primeira à terceira pessoa, do narcisismo à apropriação. Lembro da pergunta que me fez um colega numa mesa da qual participei: mas por que vocês, escritores de hoje, optam tanto pelo que se chama de autoficção?
Elaboro melhor a resposta agora: pela liberdade de escrever a partir da matéria da minha vida o quê e como eu quiser. Porque a literatura precisa continuar sendo um lugar de exercício de liberdade. Porque a imaginação não só precisa ser livre, mas só é imaginação se for livre. Porque criação literária sobre si não deixa de ser criação. É sempre ficção, e ao mesmo tempo nunca é. Até o estilo é autobiográfico, escreveu Renato Prelorentzou em sua tese de doutorado.
Prefiro entender a escrita de si como Rachel Cusk entende Annie Ernaux: mais como sacrifício que como narcisismo. No perfil que escreveu para a New York Times Magazine, traduzido para o português por Mariana Delfini, Cusk afirma que "Ler um livro de Annie Ernaux depois do outro era como assistir à construção de um edifício em tempo real, uma coisa que brotava da terra molhada e era fabricada tijolo por tijolo. A beleza e a brevidade perturbadoras desses livros, bem como a sua aparente simplicidade, de certa forma disfarçavam o alto preço de sua sinceridade. Eu nunca tinha visto a suposta liberdade — o 'narcisismo', como agora gostamos de chamar — da análise de si mesma ser tão exposta em sua brutalidade. Ernaux compreendia a profundidade do isolamento e da perda em que precisava mergulhar para buscar a realidade original de seu ser. Sua arte não tem nada a ver com a ênfase em uma experiência pessoal; pelo contrário, é quase uma autoviolação."
Texto nenhum de mulher alguma que escreva sobre si pode ser acusado por um homem de narcisismo sem que se suspeite de o comentário ser impelido pelo temor da perda do privilégio. As mulheres foram escritas, teorizadas, inventadas por homens durante séculos. Que uma mulher escreva sobre si mesma hoje é, de antemão, um gesto político. Quando tematiza a própria exposição, mais ainda — como faz Tatiana Salem Levy em seu belíssimo "Melhor não contar".
"Sempre começo escrevendo meus livros em terceira pessoa. (...) Mas, invariavelmente, em algum momento da escrita há uma primeira pessoa que se impõe e só então sinto que estou dizendo o que quero. (...) Uma primeira pessoa que, mesmo quando tem a voz da autora, não se confunde com ela, pois é já outra coisa, literatura. Ou será que se confunde?", se pergunta Salem Levy.
Quando escutei a outra pergunta, aquela feita a minha amiga, um paralelo se fez, raciocínio imediato. Dias antes eu lia "O prazer censurado - clitóris e pensamento", publicado no Brasil pela Ubu com tradução de Célia Euvaldo, em que a filósofa francesa Catherine Malabou discute, entre tantas outras questões, a diferença instituída por Freud entre a mulher clitoridiana e a mulher vaginal.
Para o criador da psicanálise, mulheres capazes de atingir orgasmos vaginais com penetração teriam primazia sobre as que conseguem gozar "apenas" com estimulação do clitóris; gozar com o pênis alheio seria, então, um estágio mais evoluído, e conseguir gozar só com a autoestimulação, uma falta, quase uma falha.
Foi em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" que Freud rotulou as mulheres que não chegassem ao orgasmo pela vagina de frígidas, desconsiderando até a existência do orgasmo clitoridiano. O ensaio de 1905 (com versão final de 1925) é lido por Elena Greco, a Lenu, em "História do novo sobrenome", o segundo volume da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante. Como era de se esperar, ela o odeia.
O livro de Catherine Malabou desconstrói esse e outros mitos acerca do clitóris, único órgão do corpo humano cuja existência não se deve a mais nada além do prazer, e inverte a gradação da mulher clitoridiana à vaginal inventada por Freud. Prescindir da penetração, do pênis — prescindir do outro — não é falha alguma. Malabou traz à baila a magnífica feminista italiana Carla Lonzi, para quem o "clitóris deve perder seu papel secundário" e para quem ser clitoridiana significaria, para uma mulher, precisamente pensar em primeira pessoa.
E prescindir do pênis não é necessariamente excluir o outro, até porque o gozo clitoridiano não precisa ser solitário — e porque escrever sobre si não diz respeito somente a si, mas pode ser e muitas vezes é a ponte para o Outro (segundo Lacan, na linguagem o sujeito já escapou de si).
Assim como a tal mulher clitoridiana não é inferior à vaginal, a escrita de si não é inferior à ficção. Tal gradação nem faz sentido como disputa dos poucos leitores, pois quem lê não lê apenas um mesmo livro, seja ele de que teor for. A força da literatura é justamente que seja múltipla e vária (e sejam bem-vindas todas as maneiras de uma mulher enfim gozar).
Sem nenhum tipo de censura de lado algum, que a literatura possa continuar sendo o exercício intrinsecamente ético de liberdade que é. E que artistas de todo o mundo, seja de que gênero forem, possam optar por escrever o gênero que quiserem e escolher livremente se inventam ou se, como Annie Ernaux, vivem para contar.
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