Natalia Timerman

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Reportagem

Ilaria Gaspari: 'Vulnerabilidade é a capacidade de ser afetada pelo mundo'

Ilaria Gaspari suava do outro lado da tela, numa Itália escaldante pelo calor da crise climática. O desconforto não diminuiu a gentileza e paciência com que me explicava conceitos filosóficos que um dia achei difíceis de entender - agora não mais, não nas palavras dela. Seus livros de ensaio "A Vida Secreta das Emoções" e "Lições de Felicidade" chegaram ao Brasil pela editora Âyiné, em tradução de Leticia Mei e Cezar Tridapalli, respectivamente, e em breve teremos "A Reputação", romance sobre como se constrói e se sustenta uma mentira sobre uma pessoa.

A filósofa e escritora de 37 anos, primeira autora confirmada para a Flip de 2024, já tem seis livros publicados, apesar de se descrever como uma pessoa procrastinadora. Na entrevista a seguir, ela explica por que precisa partir de um desconforto para escrever e como conseguiu tornar fundamento de seus livros justamente o que já acusaram de ser seu ponto fraco: as emoções.

De onde surgem seus livros? Cada um tem uma história ou eles surgem todos de um mesmo lugar em você?

Aparentemente cada livro tem sua história, mas no final, todos vêm do mesmo lugar em mim. O que me interessa é tentar dizer do que se trata a vida. Como posso descrever a vida? Sei que a pergunta pode soar vaga e ampla, e é por isso que me debruço sobre questões relacionadas ao corpo, à emoção, sobre como podemos dizer o que acontece com nossa percepção e com os sentimentos mais sutis, quase impossíveis de dizer.

Talvez por isso eu seja tão obcecada por Marcel Proust, que a meu ver é quem melhor escreve a textura da experiência de viver. E também sou obcecada, dentro da filosofia, por Michel de Montaigne, um autor muito admirado pelo próprio Proust. Estou relendo agora "Rumo ao farol", de Virginia Woolf, que li quando adolescente, e como alguém que está tentando por minha vez escrever, percebo como é difícil captar o sentimento da vida. Busco, então, essa investigação pela escrita, e observando e testemunhando como eu vivo e como outras pessoas vivem.

Em seus textos sobre filosofia, muitos de seus exemplos são literários, e o primeiro livro que você publicou foi um romance ("A ética do aquário", ainda sem tradução para o português.) Como é sua relação com a filosofia e com a literatura? Como você vê a própria relação entre elas?

Eu não vejo um limite muito definido entre filosofia e literatura. Ambas giram em torno da mente, da alma e das experiências humanas. Elas quase se confundem, não à toa meus filósofos favoritos são também grandes escritores, como Michel Montaigne e Blaise Pascal.

Pensando no mundo antigo, Platão também foi um grande escritor, até uma espécie de dramaturgo, que formulava peças com os personagens para explorar a especulação. Há tantos outros exemplos, como Iris Murdoch, escritora, poeta e filósofa, que não é tão conhecida na Itália, não sei no Brasil.

Eu sempre amei literatura, fui estudar filosofia porque queria adquirir um método sobre meu pensamento, mas sempre misturei os estudos de filosofia com leituras e estudos de literatura, e então tudo começou a ser uma grande tessitura de exploração da mente humana. Conforme fui crescendo e escrevendo, percebi que não tinha uma ideia clara do meu estilo. E então, de livro em livro, me dei conta de que estava fazendo pesquisa sem ter consciência disso.

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Não se é tão autoconsciente ao escrever, porque se precisa de algum espaço, mas quando você tem esse espaço e meio que brinca com o trabalho, algo acontece, o texto vai sendo construído de forma mais espontânea do que se você estivesse escolhendo cada passo que você dá. Descobri assim que meu estilo é um estilo de reflexão e narrativa, com uma cadência narrativa, porque para descrever a experiência, é preciso contar sobre a experiência.

Alguns filósofos são mais inclinados à especulação, eu preciso de fatos. Eu preciso de uma história. Eu preciso de personagens, de um cenário psicológico. E quando obtenho tudo isso é que consigo entender as coisas. E conforme eu entendo, consigo dizer. Para mim, filosofia e literatura são gêmeos, as duas faces do mesmo esforço.

Andrea del Fuego, uma escritora brasileira magnífica, diz que filosofia é ficção. Você concorda? Pensando por exemplo no começo de "Lições de felicidade", eu não sei se chamo a mulher que está se separando de "você" ou de uma narradora em primeira pessoa. Você parece estar falando sobre si mesma, mas há uma construção ficcional, como na cena em que você está organizando os livros e então você decide escrever.

Sim, essa é uma formulação perfeita. É ficção. E sim, eu sempre escrevo na primeira pessoa, mas é uma primeira pessoa ficcionalizada. Eu uso minha própria experiência para tecer a experiência desse olho ficcionalizado que me ficcionaliza, que me diz. É algo muito experimental e prazeroso, mas eu sempre preciso de uma espécie de máscara para escrever, então meu texto não é estritamente autobiográfico.

Seu texto é, antes de tudo, literário, pelo cuidado com as palavras, com as imagens, com o ritmo do próprio texto. Você escreve com afeto muitas vezes sobre o próprio afeto, como em "A vida secreta das emoções", um livro que li num momento difícil como um jeito de pensar sobre as emoções ao invés de senti-las, de descansar delas nelas. Você considera o afeto importante no aprendizado?

As histórias e a ficção permitem que você sinta algo, e então seja afetado pelo que acontece não só ao seu redor, ou não só com você fisicamente, mas também na sua mente. Esse esforço de imaginação é algo muito precioso e que não podemos perder. Essa é uma das razões pelas quais me preocupo com que as pessoas não leiam mais. Sei que formular assim é simplificador, porque as pessoas sempre, e ainda hoje, são nutridas por histórias e ficções, mas elas preferem assistir a imagens do que imaginar elas mesmas. O esforço de imaginação ativa da leitura é importante porque permite expandir a mente emocional, e é assim que as memórias são construídas e se consegue ganhar conhecimento das coisas.

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Eu falo em "A vida secreta das emoções" sobre arrependimento. As emoções podem decidir por você, e se você está ciente delas, você pode não se deixar ser dominada pela força delas, mas essa força existirá, queira você ou não. Eu li pesquisas que diziam que as memórias não se estabelecem se você não sentir. Nós precisamos ser afetados pelas emoções para construir uma visão do mundo e uma imagem do mundo.

"Eu acho que você precisa se sentir desconfortável para escrever", diz Ilaria
"Eu acho que você precisa se sentir desconfortável para escrever", diz Ilaria Imagem: Pietro Baroni

"Lições de felicidade" se inicia em um momento de desespero, quando você (ou sua narradora) acabou de se separar - um momento de não saber, da terrível liberdade que traz a falta de rotina. Poderíamos dizer que isso é o oposto da postura arrogante que algumas pessoas podem ver da filosofia, mas se refletirmos bem, pensar parte mesmo do não saber, não é? Sua escrita é a organização de um saber, uma investigação sobre o que você ainda não sabe ou um pouco dos dois?

Eu acho que você precisa se sentir desconfortável para escrever. Você não pode estar muito estabelecido e firme em uma posição, você precisa de um pouco de desequilíbrio, porque quando perde o equilíbrio, você sai em busca do que não existe. Eu estranhamente gosto muito disso quando escrevo: sei de onde estou partindo, mas não para onde vou. Não sei qual será minha minha postura, minha atitude mente-corpo no final do processo de escrita.

E você precisa ser transformado pela escrita porque, do contrário, não faz sentido o esforço que ela te exige. E foi isso que o estudo da filosofia me deu, algumas ideias de onde eu poderia procurar respostas, mas nunca ter as respostas, apenas ter perguntas. E então seguir essas perguntas, tentar construir algo e então começar de novo e de novo, elaborar uma imagem que é sempre algo transitório.

Cada livro que escrevi, eu escreveria de forma diferente hoje. Eu escrevi de uma determinada forma porque me faltava informação, e então obtive um pouco mais de informação, e passo a escrever de outra forma, e daqui a dez anos terei muito mais informação, e então começarei a esquecer informações. Tudo se transforma conforme se vive, e também a escrita, e isso é lindo e nunca muito certo. Tenho uma postura muito cética e assim meu conhecimento pode se ampliar, mas não existe nada de absoluto no conhecimento. E escrever um livro, eu acho, é apenas um exercício de desequilíbrio. Você não pode ser muito equilibrado, caso contrário, não escreveria.

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Você explora o mundo da filosofia, que é majoritariamente ocupado por homens. Parece que você o tem em suas mãos, e precisamente de um lugar de vulnerabilidade, o lugar que muitas vezes foi dado às mulheres. Como é ser uma filósofa hoje? De que maneiras você enfrentou machismo em sua carreira como escritora e filósofa?

As coisas hoje em dia estão muito melhores do que há vinte anos, muito melhores do que há quarenta anos, atualmente há um grande trabalho em andamento no mundo da filosofia, mas, por exemplo, estudei em universidades excelentes [Escola Normal Superior de Pisa e Sorbonne], onde apenas algumas das professoras eram mulheres e o corpo docente era primordialmente formado por homens.

Fui muito sexualizada por conta da minha aparência, e também fui criticada por ser muito alegre, muito emocional. E isso era um problema quando eu era estudante, não o tempo todo, porque também encontrei compreensão e entendimento profundos, mas me vi diante de homens e também de mulheres muito críticos. Mas foi justamente aí que construí uma forma de confiança, de empoderamento.

Quando mais jovem, eu temia esse olhar crítico para minhas palavras e interesses, eu era muito tímida, na verdade ainda sou. Mas agora eu abraço esse tipo de fraqueza, esse tipo de vulnerabilidade, melhor dizendo, e a considero a minha capacidade de ser afetada pelo mundo. E foi assim que meu lado emocional se tornou a base da minha narrativa, da minha escrita, o que alimenta tudo o que faço, escrevo e penso. Eu assumo agora essa vulnerabilidade como o que me nutre do desejo de escrever, então eu inverti o problema.

Gosto muito de quando você fala de Sócrates e do Daimon, a voz interior que, dizendo não, impede uma pessoa de se afastar de si mesma. Há algo de trágico e de grande em seguir a própria vocação, você diz num curso, mas também há algo de trágico em não poder segui-la Em um mundo onde as oportunidades não são iguais para todos, o que você diria para alguém que quer ouvir seu Daimon, mas é impedido pelas circunstâncias?

Sócrates era um sujeito empoderado na Grécia Antiga porque era homem e era livre, então ele podia lançar seu próprio desafio à sociedade ateniense e ser até de alguma forma rejeitado pela sociedade. Ele foi processado e condenado à sentença de morte, mas ele só pode propor esse desvio porque partia de uma posição de poder.

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O meu favorito entre os filósofos gregos é Epicuro, que foi discriminado e não era considerado cidadão de Atenas por ser estrangeiro. Ele tinha menos direitos que os outros cidadãos e mesmo dessa posição decidiu fundar uma escola e abri-la para mulheres e escravos, que nem eram vistos como humanos e não tinham os mesmos direitos que os cidadãos.

Ao longo da história, sempre houve discriminações, o que deve nos alertar para que prestemos atenção para qual parte da história é contada e qual permanece silenciada. Eu sempre me pergunto: quantas mulheres construíram um sistema filosófico ou tiveram a ideia de algo grandioso para fazer com a escrita e com a filosofia e não conseguiram? Quanto talento foi desperdiçado ao longo da história? Quanto perdemos com isso?

Estamos mais conscientes hoje quanto às discriminações, mas ainda assim elas simplesmente permanecem. Todos nós precisamos cooperar. A ideia do Daimon tem sido cooptada pela autoajuda e por uma lógica individualista em que só se quer aprender a vencer os outros. Esse não é o ponto. O ponto é a cooperação, a coletividade, o que torna a condição de todos melhor. É bom ouvir seu Daimon, mas tudo o que se faz em filosofia e literatura deve ter também um lado político, nem que seja na forma como se abre a lente para a discussão.

Você fala sobre filosofia como uma linguagem viva. Como ela pode nos ajudar na vida cotidiana?

Pensar em filosofia como uma linguagem viva, não como algo que é simplesmente o oposto de uma linguagem morta, ou que você só tem que estudar, é considerá-la como algo dentro do que você poderia viver. Algo que você poderia de fato se servir. Por exemplo, o pensamento filosófico ajuda a construir argumentos. As fake news distorcem argumentos, as pessoas que as fabricam ou sustentam pulam alguns passos lógicos, e com a filosofia, você pode construir o seu próprio discernimento, sua maneira de raciocinar. A filosofia também possibilita olhar as coisas de diferentes perspectivas, colocar entre parênteses o que você acha que é certo, como o pensamento cético faz, e tentar ver de outro ângulo, procurar o que é peculiar, o que é estranho, o que é novo no que você tem debaixo dos olhos.

Com a filosofia, você percebe que a maneira como você pensa as coisas pode mudar a maneira como você as vive. Essa é a grande lição da filosofia antiga. Se você pensa o mundo como um lugar de diferenças, você vai olhar eticamente para os outros, para o próprio mundo, e as diferenças deixam de ser algo a ser eliminado, pelo contrário, você passa a perceber como a diferença é valiosa, dá textura ao mundo. Além disso, a filosofia ajuda a distinguir entre o que você pode mudar com suas ações, ou seja, o que é de sua responsabilidade, e o que não pode, porque não depende de você, e essa é uma distinção muito importante, que só se obtém a partir da filosofia se ela for de fato uma linguagem viva.

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