Jamaica Kincaid: a literatura pode mudar o mundo?
Ler costuma ser solitário, mas há livros que convocam conversas. "A autobiografia da minha mãe", da escritora de Antígua e Barbuda Jamaica Kincaid, é um deles. Duas dessas interlocuções me ajudaram a entender por que fui tão mobilizada por esse livro, que chegou ao Brasil em 2020 pela editora Alfaguara em excelente tradução de Débora Landsberg. Na primeira, Patricia Ditolvo me contou que o incluiu em um clube de leitura de clássicos. Faz sentido: "A autobiografia de minha mãe" é um clássico justamente porque nos faz rever o próprio conceito de clássico. Porque o subverte, colocando a si próprio no lugar.
O romance de Kincaid é escrito em primeira pessoa por uma narradora mulher, sobre seu corpo, com seu corpo. O corpo de uma mulher que sangra, expele, secreta, o corpo de uma mulher que goza, e cujo gozo pode ser a escrita mesma: "minha voz parecia ter ficado presa na minha mão, a mão que estava presa nos pelos entre minhas pernas."
Escrevendo a partir do corpo vivo dessa narradora chamada Xuela, cuja mãe morreu no parto, Kincaid pensa sobre a própria condição da feminilidade. Reconhece a armadilha colonial que a captura, ao mesmo tempo em que, com as palavras, escapa dela: "Ela era uma dama, eu era uma mulher, e essa distinção era importante para ela; isso lhe permitia acreditar que eu não associaria o comum, o cotidiano - uma evacuação intestinal, um berro de êxtase - a ela, e um pequeno ato de crueldade era alçado a um ritual de civilidade. (...) Era uma descrição certeira de si mesma, mais do que ela gostaria que fosse, pois é verdade que uma dama é a combinação de invenções elaboradas, uma coletânea de aparências, arranjos faciais e partes do corpo, distorções, mentiras e esforços vazios."
Descrevendo a roupa do homem com quem acabou se casando, Xuela reconhece também a armadilha colonial que engendrou o racismo, e o desnuda sem chegar a pronunciá-lo. A narradora estranha a cor bege, torna a cor branca desabitual, tira-a de seu lugar de hegemonia tácita: "a calça era de linho e de um tom bege de que eu não gostava: ossos mortos havia muito tempo eram daquela cor, conchas vazias eram daquela cor, é uma das cores da decadência, mas era uma cor de que ele gostava, muitas peças que usava eram daquele tom e bege; os sapatos eram marrons, maciços e reluzentes."
A narradora recusa, no entanto, uma mera inversão de poder, porque recusa a lógica sem saída que a levaria a isso. "Eles voltavam do serviço como vigias da casa do governador, embora essa função, proteger o governador, não tivesse sentido nenhum, pois quem faria mal ao governador? Eu faria, acharia fácil cortar a cabeça dele, mas então mandariam outro governador, e eu mesma me cansaria disso, de cortar a cabeça dele."
Com metáforas de uma beleza surpreendente, munida do sopro da palavra, Xuela - Kincaid - destitui o trono de quem acreditava tê-lo. Subverte, atrelando ao poder a insegurança, a própria ideia de trono: "Pelas suas mãos se via que nem tinha confiança, não tinha confiança em público e tampouco em particular: suas mãos eram pequenas, desproporcionais ao resto do corpo; eram pálidas, da cor de um inseto em seu estágio de pupa; não eram mãos capazes de inventar ou conquistar o mundo, eram mãos que poderiam perder o mundo."
A palavra, no romance, não é usada da maneira que se costuma usá-la. Não há, no livro, didatismo algum, e mesmo assim (ou talvez por isso), a voz de uma mulher negra vai se tornando a voz do mundo. O seu jeito de vivê-lo, entendê-lo, dizê-lo. Construí-lo.
Gabriela Aguerre, na segunda conversa que me ajudou a entender por que o livro de Kincaid me mobilizou tanto, contou que, em uma entrevista, a autora diz recusar a lógica da jornada do herói para seus enredos por ser uma jornada fálica, em que o ápice da crise do protagonista assumiria a forma de um falo para, baixando de tensão após, seguir confirmando-a. Kincaid prefere a circularidade, e esse projeto - o da circularidade - é reafirmado em cada linha, em cada palavra, fazendo das frases, rendas; com repetições, cerze os círculos que, no todo, formam um tecido rendado, feito da circularidade mesma: "A esposa dele ainda era viva na época, o nome dela era Moira e ainda era viva."
Outro exemplo desse rendilhado, dessa circularidade, referindo-se a uma mulher branca: "Ela estava muito satisfeita por ser quem era e com isso queria dizer que estava muito satisfeita por ser do povo inglês, e isso fazia sentido, porque esta é uma das primeiras ferramentas de que você precisa para ofender outro ser humano - estar muito satisfeito com quem se é."
Não consigo dizer que a literatura muda o mundo, mas talvez a mudança comece em ações, que começam em palavras. A literatura, a literatura de Jamaica Kincaid, nos ajuda a enxergá-lo. Uma literatura que diz, de um homem branco: "Ele não tinha futuro, só tinha passado." Uma literatura que ousa inventar esse mundo nosso outra vez.
"O mais simples dos movimentos, o de virar as costas, é um dos mais difíceis de se fazer, mas depois de feito você não consegue imaginar que foi tão difícil assim", reflete Xuela. Já passou da hora de virarmos as costas a um modo de ver o mundo e de viver que está nos matando.
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