Uma entrevista com a poeta Luiza Mussnich
Em um mundo em que as chamas não são mais metafóricas, há lugar para o amor, há lugar para a poesia? A poeta carioca Luiza Mussnich, em seu novo livro "Todo resto é muito cedo", sem oferecer respostas, nos coloca diante da pergunta.
Depois das coletâneas de poemas "Lágrimas não caem no espaço" e "Tudo coisa da nossa cabeça", Luiza, em diálogo com diversos outros poetas e artistas (entre eles Chico Alvim, Ana Martins Marques, Agnes Varda e Michel Foucault), debruçando-se sobre a paixão, investiga como a palavra faz ponte entre o individual e o coletivo.
Em conversa por e-mail, Luiza conta de sua escrita como um tatear e das imagens que compõem sua poesia. "Todo resto é muito cedo", com orelha de Heloísa Teixeira e posfácio de Prisca Agustoni, sai pela cuidadosa editora Bazar do Tempo e será lançado em São Paulo no dia 1º de outubro, na Livraria da Travessa de Pinheiros, às 19h.
A primeira palavra do primeiro poema de seu livro, após o título, é "escrever". Isso poderia ser uma ordem, mas também apenas um lembrete. O significado do título desse mesmo poema, "rubrica", também oscila: hoje, quer dizer assinatura breve, até apressada, mas já foi, como lembra Prisca Agustoni no posfácio, "tinta vermelha; lei". Os poemas do livro também transitam entre o que é breve e individual, como a paixão, e o que é coletivo e duradouro, como as guerras e as crises da humanidade. Como a palavra faz esse trânsito?
Gostei muito do que você falou sobre "escrever" e "rubrica" e queria comentar antes de te responder.
Escrever, sim, é a ordem , o lembrete, mas, também, para mim: a tentativa. Uma forma de tatear, prolongar, buscar ou desconstruir sentido. Recentemente li uma frase do Leonard Cohen em que ele diz que a poesia é uma prova/ evidência da vida (o que me fez lembrar do título do primeiro livro de poesia do Drummond, "A vida passada a limpo").
Rubrica é também um termo usado na escrita ou descrição (o embate entre escrever e descrever) de uma cena na linguagem cinematográfica. É, no meu entendimento, construir alguma coisa que não será lida — mas: vista, sentida, ouvida, quase tocada. Apesar de a poesia pertencer à literatura, vide as categorias dos prêmios literários, ela transcende essa fronteira, flerta com as artes visuais, o cinema.
Agora, chegando na sua pergunta: penso que a história coletiva e a estória individual estão coladas, tanto na vizinhança fonética (estória/ história), quanto na vida em si. É mais difícil estar feliz sabendo que tantas pessoas estão morrendo, que o mundo está sofrendo as consequências práticas, emocionais, paradigmáticas de uma pandemia, de massacres, de guerras. Foi ali que comecei a pensar com força sobre as guerras que assombram a humanidade desde que se pintava cavernas e que se desdobraram em muitos poemas do livro, bem antes das guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Porque numa guerra, os pormenores da vida cotidiana ficam em segundo plano, como nos versos do poema "carótidas" (o amor fica suspenso/ em tempos de guerra/ não há cabeça para nada daquilo/ em que geralmente se pensa/ nos tempos de paz). Acredito que a poesia seja feita de palavras, não de ideias, embora a ideia — além de som, ritmo e imagem — seja um elemento primordial de constituição de um poema. O trânsito de que você fala acontece por deslizamentos verbais de palavras que se aproximam, ou mesmo de quebras abruptas de versos, trocas de assuntos, introdução de novos elementos.
Ainda sobre o primeiro poema, ainda sobre a escrita: é um poema que sugere (ou ordena, ou anota) que se escreva uma cena em que um homem e uma mulher se desejam, e se desdobra em muitas possibilidades de acontecimento ou não do encontro entre eles. A cena, no entanto, nunca é escrita. É como se o poema se interpusesse entre o que pretende anunciar e a realidade; no entanto, a cena fica insinuada, e se delineia quase um enredo - a história de uma paixão - às vezes mais, às vezes menos sutil, que seguimos ao longo do livro. De onde vem a poesia de "Todo resto é muito cedo"? Quem escreve quando você escreve?
Esse poema surgiu da leitura de uma entrevista que li há muitos anos com o Amós Oz, em que ele fala que escrever/ descrever uma cena em que um homem e uma mulher se desejam, mas nada acontece entre eles é muito mais difícil do que escrever a cena em que as coisas acontecem entre eles. Esse desejo que não se concretiza, essa insinuação, esse o-que-poderia-ter-sido — tudo isso tem muita potência, investimento libidinal, energia vital.
No mesmo "carótidas", escrevo que "palavras começam uma guerra/ palavras terminam uma guerra". Pra mim, as palavras são uma grande força, mas existem frestas e brechas de que ela não consegue dar conta. Aquilo que não se diz, que não se pode ou não se deve dizer tem muito poder. E a poesia tateia por esses espaços, tergiversa, tangencia, insinua. Acho que é tarefa da poesia habitar os "ses" e "talvezes" do mundo, dissecar as dúvidas, ampliar os por quês. E é desse espaço de não realização, de devaneio, de sonho, que vêm os poemas de Todo o resto é muito cedo. Quem escreve esses poemas é uma mulher que já se apaixonou e sofreu todas as consequências de uma paixão — mas poderia ser qualquer pessoa que atravessou ou devaneou essa experiência.
Tartarugas, máquinas e olhos são imagens recorrentes nos poemas de "Todo resto é muito cedo". "talvez o amor/ esse adiamento contínuo/ tartaruga sem destino/ rastejando pelo jardim desabitado"; as máquinas, "mesmo que seus fios pareçam veias:/ não transportam sangue algum"; "apesar da vontade só os olhos/ podem chegar à dobra/ sem despencar". Os significados dessas imagens se reforçam, se interpenetram, se contradizem. Como de uma imagem se constitui um poema, como de um poema se constitui um livro? O que você controla e o que não controla no fazer poético?
Além da sonoridade da palavra, tartarugas me remetem a algo duradouro (elas são muito longevas), mas vagaroso, que se move ou acontece devagar.
Os olhos são minha parte favorita de qualquer corpo e sempre me fascinaram. E, também, "a única parte visível do nossos sistema nervoso", como aprendi. Adoro fazer poesia com informações científicas e descobertas.
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Quero receberO segmento das máquinas e monstros é uma homenagem à relação de amor, impossibilidade e troca intelectual entre os artistas Marcel Duchamp e Maria Martins, correspondentes e amantes por toda uma vida.
Uma imagem pode ser o ponto de partida de um poema, ou mesmo o poema inteiro. Cada construção é muito única, mas a escrita da minha poesia está sempre olhando, buscando cenas, imagens, flashes.
Eu raramente sei para onde vai um poema. Eu começo e as palavras vão me conduzindo, me guiando, me tirando da rota, até. Às vezes, elas me deixam diante de um beco, ou até de um precipício. Os poemas podem tanto nos levar a espaços asfixiantes e apertados como a campos abertos, com um horizonte inteiro por onde se perder.
"o que realmente importa do passado se divide/ em duas categorias:/ coisas que gostaríamos de lembrar/ coisas que não pudemos esquecer": aqui, mais uma vez, a palavra se encontra entre o individual e o coletivo, podendo servir a ambos. Qual é o lugar da poesia entre lembrar e esquecer?
Acho que a poesia pode ajudar a lembrar e ajudar a esquecer. Ou ela pode oferecer uma outra via: e se lembrássemos desse jeito; e se esquecêssemos dessa forma? O que aconteceria à lembrança ou à desmemória?
Heloisa Teixeira, na orelha de "Todo o resto é muito cedo", nos lembra da sua obsessão para compor listas, onipresentes em "Tudo coisa da nossa cabeça". Aqui há, por exemplo, a lista do que se poderia fazer com as mãos, um inventário de uma relação amorosa. O que podem as listas? O que não podem?
As listas, além de um antigo interesse e uma curiosidade minhas, acabaram sendo incorporadas na minha forma de escrever poesia — não são todos os meus poemas que são feitos de listas, mas resolvi fazer um livro-série inteiramente composto por elas, o Tudo coisa da nossa cabeça, e mesmo muitos poemas de Todo o resto é muito cedo contêm listas.
Mais recentemente, as listas também viraram objeto de pesquisa e estudo acadêmico: na minha dissertação de mestrado, defendida no início de setembro deste ano, dedico parte do trabalho às listas.
Nos poemas em que as listas aparecem no livro, há coisas mágicas ("talvez fosse mais fácil amar/ com a passividade que temos diante das coisas mágicas:" e, então, uma grande lista de coisas que, sob meu olhos, parecem mágicas?), o inventário de uma relação amorosa, e possibilidades para uma relação amorosa ("vocês se conhecem sem saber/ se aquilo vai durar/ um flerte no bar?").
Listas podem guardar o que aconteceu, o que não aconteceu, o que se deseja, o que não pôde acontecer. As listas só não podem virar receitas de bolo — por mais que toda receita de bolo contenha uma lista.
"o tempo sempre aumenta/ as fissuras?" O que dizer depois do poema?
O tempo tanto esgarça, aprofunda, acentua, como faz desaparecer. Um paradoxo curioso?
Em termos de linguagem, acho que o poema está na borda.
O poema é a última coisa que pode ser dita; depois dele, não há nada mais — por isso, talvez, acredito que seja difícil fazer mesas de conversa sobre poesia. Falar sobre o poema poderia estragar a experiência de leitura.
"não escrever porque/ escrever sobre qualquer coisa que realmente aconteceu/ não deixa de ser/ uma forma de inventá-la, desejá-la, projetá-la, atraí-la". Como lidar com os riscos da palavra? Como lidar com os riscos do silêncio?
Qualquer escrita, mesmo que baseada na realidade, já é invenção, fabulação. É escolher um lado por que olhar, se aproximar por um ângulo, com um enfoque, de uma perspectiva. Escrever é tornar público o risco — o silêncio me parece mais perigoso?
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