Elas lutaram para estudar e são contra medida que prioriza escola especial
Quando era pequena e já sabia ler, a designer e blogueira Marina Batista, hoje com 35 anos, decidiu que queria ir para a escola regular. As aulas que tinha em uma escola "especial", para crianças com deficiência, não eram o suficiente. "Eu queria mais, tinha vontade de aprender coisas, não queria ficar só desenhando". Marina é cadeirante e tetraparésica por atrofia muscular espinhal tipo 2 e se locomove em cadeira de rodas. Ela e a mãe tiveram que passar por uma saga até que ela conseguisse vaga em uma escola, onde estudou até o terceiro ano. "Se não fosse isso, não seria a pessoa que sou hoje, não saberia argumentar, não teria feito pós-graduação", conta.
Marina, assim como muitas pessoas com deficiência, está angustiada desde a semana passada, quando foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro um plano de educação que incentiva que haja salas e escolas especiais para crianças com deficiências e transtornos globais do desenvolvimento.
O medo de Marina e da maioria dos ativistas contra o capacitismo no país é que o decreto vire uma desculpa a mais para que escolas regulares não aceitem crianças e que muitas fiquem sem opção, a não ser serem "niveladas por baixo". Com a tag "Escola especial não é inclusão" esses ativistas passaram a contar suas histórias e se mobilizar contra o decreto que, segundo eles, pode impedir que crianças tenham o que, com muito custo, eles conseguiram. Leia os depoimentos abaixo.
Não queria ficar só desenhando
"Eu pedi muito para estudar. Quando era muito pequena, minha mãe me matriculou em uma escola de bairro que era ok. Quando fiquei maior e começamos a procurar outra escola, começou a saga. Fomos a quase todas as escolas de Campinas. Falavam que não tinha vaga, que não tinha como. Escolas das maiores redes de ensino do estado diziam que não estavam preparadas, imagina isso!
No fim, conseguimos, em uma das escolas mais caras da cidade. Foi a primeira vez em que me senti tratada em pé de igualdade. No primeiro dia, fiz prova de nivelamento com todos os outros alunos. Fiquei fascinada por estar junto com os outros, foi a primeira vez que me senti realmente parte de algo, acolhida. Era muito bacana. Foi muito bom para mim. Eu não seria a mesma pessoa sem a escola. Eu não seria a Marina que sou hoje. Essa pessoa que gosta de escrever, que argumenta, discute, tem pós-graduação. Eu estaria o que, em casa, desenhando?" Marina Batista, designer e criadora do blog "Rodando pela Vida" tem deficiência causada por atrofia muscular espinhal tipo 2.
A aula especial era um porre
"Fui alfabetizada em uma escola construtivista aos nove anos. Depois, minha mãe tentou me colocar em um colégio e não aceitavam. Era um colégio que tinha várias classes especiais e falavam que eu não acompanharia a aula regular, mas que era muito inteligente para a classe especial. Minha mãe teve que ameaça chamar advogado para que eu fosse aceita.
Estudei por dois anos nessa escola, que era católica, em uma sala especial. Eu não aguentei, pedi para a minha mãe me colocar de volta no ensino regular. O ensino para especiais se baseia na premissa de que as pessoas são incapazes de aprender, por isso é repetitivo. Acho que se eu tivesse ficado na classe especial iria perder anos, ia apresentar uma defasagem em relação a minha idade escolar, nem conseguiria chegar a universidade e ter o trajeto na academia que tenho hoje". Anahí Guedes de Mello, antropóloga com mestrado e doutorado na UFSC. É referência nos estudos críticos da deficiência na América Latina e surda desde a infância.
Não tem vaga
"Comecei a estudar em uma escolinha de bairro perto da minha casa. Foi uma experiência ótima. A história complicou quando acabou a escolinha e eu teria que entrar em uma escola de verdade, que tivesse ensino fundamental e médio. Tenho dois irmãos que estudavam em escolas particulares fortes, então, claro, para minha mãe era lógico que eu iria para a mesmas escola que eles.
Só que, nossa, foi aí que começou o drama. Rodamos Salvador inteiro. Sempre tinha desculpa. Vivemos situações absurdas, por exemplo, falavam que não tinha vaga. Aí chegava um amigo da minha mãe e falava: "acabei de matricular meu filho nessa escola!". Isso porque já era lei. Imagina como seria se fosse agora, com um projeto que incentiva escolas especiais? No fim, ela consegui uma vaga para mim. Se eu não tivesse ido para uma escola regular, acho que não seria advogada hoje." Mila Oliveira, 33 anos, advogada, tem deficiência causada por amiotrofia espinhal
Me sentia um ET
"Pelo fato de ser uma pessoa com deficiência não afetar na minha mobilidade, eu não tive problema para ser aceita em escola regular. Por outro lado, eu sempre era a única pessoa com deficiência. Isso fazia eu ser alvo fácil para bullying, Eu me achava um ET. Se eu tivesse tido mais colegas com deficiência, teria sido muito diferente para mim, eu teria me entendido melhor. Sei que tive essa sorte. Mas de qualquer maneira, a importância de uma pessoa com deficiência estudar em uma escola regular, é dela ter futuro. Claro que as pessoas vão achar que quem estuda em uma escola especial não tem o mesmo preparo, ela vai ser a coitadinha, segregada.
A ideia da escola especial pode ser bonitinha, ainda mais quando ela no papel é dita que é opcional, o que sabemos que, claro, não é o que vai acontecer. É uma falácia dizer que a escola especial vai ser boa para criança deficiente. O governo tem obrigação de fazer escolas públicas serem acessíveis. A pessoa com deficiência é pessoa acima de tudo. Ela merece fazer mestrado, ter um trabalho. Ela é uma pessoa, não?" Mariana Torquato é criadora do canal "Vai uma mãozinha aí", o maior portal sobre capacitismo do Brasil, e faz mestrado em Berlim.
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