Não, Melhem, mulheres que passam por assédio não precisam mostrar a cara
Em entrevista ao UOL sobre as acusações de assédio que foram publicadas pela revista Piauí, o diretor Marcius Melhem chorou. "Foi muito doloroso para mim". O choro combina com a narrativa que ele tenta construir para se defender das acusações. Melhem usa uma tática muito comum nesses casos: se faz de coitado.
Em vez de acusado por crimes, ele seria, veja só, uma vítima de uma espécie de complô feito principalmente por mulheres e jornalistas maldosos. Ele não é o primeiro a usar essa tática.
É comum que acusados de assédio tentem angariar simpatia apelando para o personagem que "teve a vida destruída" por mulheres ardilosas e vingativas. Mas, bem, quem costuma ter a vida destruída são as mulheres que sofrem assédio. Marcius, como muitos outros, tenta mudar o jogo. De acusado, ele seria vítima.
E vítima de quem? Na entrevista, o colunista Mauricio Stycer fez essa pergunta diretamente: "Por que estariam inventando uma coisa dessas? É um delírio coletivo, está todo mundo contra você?" Marcius explica que existem, sim, pessoas que ele "feriu", mas em seguida diz que existe um processo de vingança contra ele. "Eu acredito que tem pessoas que eu genuinamente feri e gostaria de saber quem são, assumir responsabilidade, me reparar. Mas existe também um processo de vingança contra mim por pessoas que se sentiram desprestigiadas no trabalho, que queriam estar em outros programas", afirma.
Mulheres inventariam assédio, se uniriam pra buscar provas, contratariam advogada... por vingança? Isso faz algum sentido? Quem passaria por esse sofrimento?
"Ah, mas elas não mostram a cara." Essa é outra tática usada por ele. Se as vítimas não mostram a cara, elas não existem. Vamos lá, de novo: mulheres que passam por assédio não precisam dar a cara. Elas se defendem como podem. Imagina a dificuldade de abrir uma história dessas para o público?
Mas Melhem realmente parece não saber como acontece um assédio, por mais que tenha feito todo um processo de desconstrução, como ele diz.
Ele acha estranho, por exemplo, que Daniela Calabresa continue falando com ele depois do alegado assédio ter ocorrido. Eles continuarem a se falar seria uma prova de que não houve assédio.
Não é assim. E todo mundo que já sofreu ameaça moral no trabalho (eu já passei por isso) sabe o quanto a relação é complicada.
A gente não vira a cara para o chefe assediador. Primeiro porque ele é nosso chefe e a gente não quer (e muitas vezes não pode) perder o emprego. E isso acontece bastante. Segundo porque a gente leva um bom tempo para entender que foi alvo de abuso. E terceiro porque até um chefe que pratica abuso moral tem qualidades.
E mais: muitas mulheres, até as que foram estupradas, demoram um bom tempo para entenderem que de fato foram vítimas de um crime. É um processo.
A outra prova de que ele, apesar de ter estudado tanto, como diz na entrevista, ainda não entendeu o que é assédio, é que ele continua insistindo que está sendo cancelado. Ele seria "mais uma vítima da cultura do cancelamento."
Não, Melhem, você não está sendo cancelado. Está sendo acusado de assédio. É bem mais grave.