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Mãe de Miguel: "Racismo está escancarado. Resolveram caso Henry rapidinho"
Há um ano, a então trabalhadora doméstica Mirtes Renata Souza, de 34 anos, enterrava seu filho único, Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, morto no dia 2 de junho de 2020, depois de cair do 9º andar de um condomínio de luxo em Recife (PE), conhecido como Torres Gêmeas.
Na mesma semana, ela teria acesso a um vídeo, filmado dentro do elevador do prédio, que mostrava que sua ex-patroa, Sarí Cortes Real, colocou o menino sozinho dentro do elevador e apertou o botão de um andar alto do prédio.
Mirtes trabalhava havia quatro anos para Sarí e seu marido, Sérgio Hacker (PSB), que à época era prefeito de Tamandaré (PE), cidade a 104 Km do Recife. No início da pandemia, com o filho sem aula e sem a opção de ficar em casa, levou a criança para o trabalho. No momento da queda de Miguel, Mirtes estava passeando com o cachorro e Sarí, que fazia as unhas, ficou responsável por olhar Miguel.
Nesse um ano de dor, a vida de Mirtes mudou completamente. "Infelizmente eu tive que lutar", diz ela a Universa por telefone. Em busca de justiça por seu filho, participa de reuniões, passeatas e acompanha o processo contra a ex-patroa.
Sarí Cortes Real foi autuada por homicídio culposo (sem intenção de matar). Ela foi indiciada pela polícia e denunciada pelo Ministério Público de Pernambuco por abandono de incapaz que resultou em morte. Foi presa, mas pagou uma fiança de R$ 20 mil e aguarda o julgamento em liberdade.
As duas agora cobram dos ex-patrões direitos trabalhistas na Justiça. Após a morte de Miguel, foi revelado que Mirtes e sua mãe, Marta Alves, eram lotadas como servidoras da Prefeitura de Tamandaré embora trabalhassem como funcionárias domésticas da família do então prefeito, Sérgio Hacker. Sarí e o marido já foram condenados pela Justiça do Trabalho a pagar R$ 386 mil para a família de Mirtes (sua mãe também trabalhava para a família Cortes Real) por dano moral coletivo. Mirtes diz que ainda não recebeu um tostão.
Em busca de justiça, a ex-trabalhadora doméstica entrou na faculdade de direito. A estudante passou o aniversário de morte de Miguel em uma passeata —usando uma uma máscara com fotos do menino impressa, ela pedia que fosse feita justiça para ele e para outras crianças negras. E também para que as empregadas domésticas fossem mais respeitadas para que esse tipo de crime não se repetisse. Leia a seguir a entrevista à coluna:
UNIVERSA - Você passou o aniversário de um ano da morte do seu filho em uma passeata pedindo justiça para ele. Você teve um momento de luto, de ficar triste, de cama?
Mirtes Souza - Infelizmente, não. Não pude viver o luto pelo meu filho. Eu preciso estar lutando. São 365 dias lutando pela justiça pela morte do meu filho. Se ele não fosse uma criança negra, não seria assim. Agora, faço faculdade de direito e estou estudando para ajudar outras mães. Organizamos a "Semana Internacional de Justiça pelo Menino Miguel"; Mas não estamos pensando só nele, mas em todas as crianças negras que estão morrendo. Os casos são tratados com muita diferença.
Olha o quanto está escancarado o racismo! No caso do menino Henry Borel (morto em março), a polícia resolveu rapidinho. E as crianças de Belford Roxo? Onde elas estão? Vai fazer seis meses! Essas mães negras estão sofrendo porque não conseguem encontrar seus filhos e a polícia não se empenha.
No caso do Henry, em uma semana, os culpados estavam presos. E o João Pedro (morto em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em maio de 2020)? São muitas crianças negras que não tiveram justiça.
Você está cursando direito. O que pretende fazer, além de lutar por justiça para o Miguel?
Vou continuar ajudando as mães de crianças negras que são vítimas de crimes. E a maneira de ajudar elas que eu encontrei foi fazer minha faculdade de direito e advogar No futuro, posso ser juíza ou promotora para ajudar essas mães. E quero tentar mudar esse Judiciário racista e classista. Não quero que outras mães passem pelo que estou passando hoje.
Você estava trabalhando no meio do lockdown quando seu filho morreu. Muitas empregadas domésticas tiveram que fazer o mesmo?
No período do lockdown rigoroso aqui em Recife, ali nas Torres Gêmeas (o condomínio onde ela trabalhava), muitas empregadas continuaram trabalhando. Elas não podiam sair, ficavam encarceradas.
Falavam que elas podiam contaminar os patrões. Mas os patrões saíam, né? Eu fui contaminada pelo marido da Sarí e passei o coronavírus para a minha mãe e para o meu filho. Fiquei muito preocupada, minha mãe é idosa e grupo de risco. E não tive nem folga quando estava com covid. Tive que levantar de uma cama e trabalhar passando mal, com febre e com fome, porque me sentia tão mal que não conseguia comer.
Em que pé está o processo contra Sarí Cortes Real?
O processo está indo devagar, parando por causa de irregularidades. Falta escutar três testemunhas de defesa da Sarí. E deram endereço errado de uma testemunha para atrasar o processo. Ouviram uma testemunha sem a presença dos meus advogados, a que eu tenho direito. Estamos lutando agora para anular esse erro que eles cometeram. E isso não é minha obrigação. Os advogados de Sarí que deveriam estar fazendo isso. Mas para ela está bom, ela está solta.
Não aconteceu nada? Você não recebeu nenhuma indenização?
Não, não aconteceu nada. Ela pagou a fiança e foi solta. No caso de processo trabalhista, eles entraram com recurso para evitar o pagamento dos nossos direitos trabalhistas. Eles estão adiando uma coisa que sabem que vão ter que me pagar.
Poxa, já não basta o que eles me fizeram, o crime que cometeram com o meu filho? Agora não querem pagar o que me devem?
O que você espera que aconteça? Tem esperança que justiça seja feita?
Eu confio na Justiça. Estou estudando para ser jurista porque acredito na Justiça. O que eu quero? Que ela pague. Ela vai pagar e ser presa pelo crime que ela cometeu. E o conselho que eu dou para as outras mães é: lute.
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