Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Biles e a geração de mulheres que não precisa engolir choro pra ser forte
Quando eu era criança, lá nos anos 80, ser ginasta olímpica era o sonho de quase todas as meninas. Nossa ídola era Nadia Comaneci, a ginasta romena que, aos 14 anos, mudou a história do esporte quando ganhou nota 10 de todos os jurados. Só que a vida de uma ginasta olímpica nunca foi conto de fadas. A começar que elas são muito jovens, praticamente crianças. E submetidas a uma rotina exaustiva, cheia de privações e, em muitos casos, abusos de treinadores e distúrbios alimentares.
Até ano passado, essas meninas faziam o que nós mulheres somos ensinadas desde sempre: engoliam o choro, não reclamavam e agiam graciosamente. E continuavam a competir mesmo aos frangalhos. Atenção, isso foi até ano passado. Agora, Simone Biles mudou a história. A estrela da ginástica americana, de 24 anos, desistiu de participar da final individual geral da ginástica artística, um dos torneios mais importantes da modalidade, por causa de sua saúde mental. Na terça (27), Simone já havia se retirado da disputa por equipes e feito um desabafo-manifesto sobre a importância de cuidar da cabeça e não só dos músculos.
"Acho que a saúde mental é mais importante nos esportes nesse momento. Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos", ela disse, demonstrando uma coragem gigante, maior do que a que exibe quando dá duplos mortais. E continuou: "Eu não confio mais tanto em mim mesma. Talvez seja o fato de estar ficando mais velha. Não somos apenas atletas. Somos pessoas, afinal de contas, e às vezes é preciso dar um passo atrás. Eu não queria ir lá, fazer algo estúpido e me machucar."
Simone não foi a única a "pifar" no esporte e não esconder o fato. A tenista japonesa Naomi Osaka, número 2 do mundo, foi desclassificada do US Open em junho e saiu da quadra aos prantos. Depois, explicou que sofria de depressão desde 2018.
As atitudes corajosas e abertas das atletas não poderiam vir em tempo mais adequado. Sim, estamos todos lutando para ter um mínimo de saúde mental no meio da pandemia e à flor da pele.
As atitudes de Simone e Naomi seriam impensáveis no passado porque essas meninas eram ensinadas, desde cedo, sobretudo a competir, não parar. No caso das duas, a pressão é ainda maior, já que elas são atletas negras, mulheres que são ainda mais pressionadas a serem fortes e "guerreiras".
Historicamente, condições como ansiedade e depressão nunca foram levadas a sério em meios competitivos. Ao contrário, distúrbios são encarados como "preguiça" e 'falta de disciplina" (o que, muitas vezes, já justificou abusos contra atletas).
Documentário expõe mundo da ginástica olímpica americana
Esses abusos podem ser, inclusive, sexuais. Em 2018, o ex-técnico da seleção de ginástica artística feminina americana nos jogos de 2012, John Geddert, foi acusado de cometer abusos contra várias atletas e de acobertar crimes do médico Larry Nassar, que trabalhava com a seleção nacional, e foi condenado por crimes praticados por mais de 20 anos contra centenas de atletas. A história, contada no documentário "Atleta A", da Netflix, é apavorante e mostra como o ambiente da ginástica pode ser perigoso.
Pelo jeito, até esse meio terá que mudar, porque as ginastas não estão mais dispostas a aguentar isso.
O "não" de Simone é um grito que mostra que as mulheres de sua geração estão realmente dispostas a mudar as coisas. Esse ano, as ginastas alemãs decidiram competir de macacão contra a sexualização. A skatista Rayssa Leal, com seus treze anos, dedicou sua medalha às meninas e disse que quer quebrar preconceitos.
As mulheres de todas as idades estão cansadas de aguentar pressão e injustiças. Ao tentarem mudar as coisas, essas atletas entram para história, junto com Nadia Comaneci.
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