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'Já fui um gay homofóbico', diz diretor de filme sobre Bolsonaro e machismo
"Eu fiquei com a cabeça em looping. Entrei em um buraco muito escuro". É assim que o cineasta Fernando Grostein define o esgotamento nervoso que teve enquanto editava o documentário "Quebrando Mitos", dirigido por ele e seu namorado, o ator Fernando Siqueira, que será lançado amanhã.
O filme é uma viagem reflexiva (muitas vezes de terror) sobre a ideologia de ódio do governo de Jair Bolsonaro. O ódio se conecta diretamente com a história do cineasta, que é abertamente gay e ativista dos direitos LGBTQIA+ e dos direitos humanos. Depois de viralizar com um vídeo onde conta como saiu do armário e fazer um vídeo sobre homossexulidade com sua mãe e seu irmão, o apresentador Luciano Huck, Fernando virou alvo fácil para os ataques homofóbicos nas redes sociais. O fato de Fernando ser também diretor do filme "Quebrando o Tabu", sobre a guerra às drogas, lançado em 2011, parece o caldo perfeito para que ele virasse alvo de ameaças de morte.
As ameaças aumentaram depois que Bolsonaro foi eleito e ele não se sentiu mais seguro no Brasil. Com o parceiro, foi morar em Los Angeles. "Eu fui muito por medo, por causa das ameaças". Mas, para ele, ficar de longe, sem fazer algo sobre meu país seria impensável. "Acho que todo o privilégio vem com responsabilidade. Eu tive o privilégio de poder sair. Quantas pessoas tiveram que ficar?".
No filme, além de mostrar a origem de Bolsonaro e entrevistas com pessoas que vão de Jean Wyllys a Fernando Henrique Cardoso, Fernando conta também um pouco de sua vida. E quebra tabus ao contar, por exemplo, que foi estuprado duas vezes. Falar de assédio sempre é difícil. Mas, nos casos dos homens é mais ainda. Fernando sabe disso. E quis ajudar quem também já passou por isso. Leia trechos da entrevista abaixo.
UNIVERSA Por que decidiu fazer esse filme, tocando em um ponto tão sensível depois de ter sofrido ameaças e até ter sair do país por isso?
FERNANDO GROSTEIN Privilégio vem acompanhado de responsabilidade. Deixamos nosso país para trás, o país que a gente ama, amigos, família. Deixamos por uma mistura de buscar realizações, mas também por medo das ameaças de morte e violência que eu recebia. Mas sentia um vazio muito grande de ver tudo de longe e não poder fazer nada. Queria contribuir com minha experiência, de quem viveu 38 anos no Brasil.
E por que decidiu lançar perto das eleições?
Para ajudar a qualificar o debate. O debate está muito infantil.
Quando você vê o presidente da república falando sobre problemas de ereção você pensa: "cadê o nível?" Tem famílias que não se falam. O grupo de WhatsApp acabou com a família brasileira!
Podem não concordar. Mas ali estão informações que foram checadas pela Agência Lupa, feitas por jornalistas, tudo com bons profissionais e muito cuidado, para ajudar não só a escolha para presidente mas também deputados, em cima de dados, não em cima dessas frases que parecem quinta série.
Você é corajoso de lançar esse filme depois de receber ameaças de morte.
Obrigado. Mas não sou corajoso. Corajoso é o Jean Wyllis, as pessoas que estão na linha de frente no brasil, as mulheres negras, as indígenas. Essas pessoas são verdadeiramente corajosas. Estamos dando nossa contribuição, mas os heróis são eles.
No filme, além de contar os horrores do governo Bolsonaro e sua ideologia, você também se expõe muito, fala sobre sua infância, o bullying que sofreu e assédio. Por que decidiu se colocar no filme?
Na minha geração, que é dos anos 80, 90, a questão de ser gay era muito diferente do que era na geração do Fê (Siqueira, o parceiro, que nasceu em 98). Eu tenho muita vergonha de ficar na frente da câmera.
Por exemplo, eu decidi fazer um canal de YouTube. Mas só de ouvir a minha voz eu me sentia mal. O Fê é ator e começou a usar alguns exercícios para me ajudar a relaxar. Foi um trabalho de casal. Ele me ajudou muito a aceitar a minha voz do jeito que ela é, a minha estética, que não é uma estética do macho masculino padrão. E fomos indo nisso até expor muito da minha vida.
Achei que isso era mais honesto. Como fizemos um mergulho que partiu do encontro da minha vida com a do Bolsonaro, tocamos em questões de muita responsabilidade, como a questão do sofrimento que os negros carregam, da matança histórica de negros e indígenas, da luta das mulheres.
Eu entendo que meu lugar de fala é apoiar essa resistência. Achei que o jeito mais correto era ser absolutamente honesto sobre qual era o lugar, de onde eu partia.
Você acha que o seu filme vai incomodar os homens que têm essa tal masculinidade tóxica?
Quando mostro o filme para amigos gays, eles adoram. As minhas amigas mulheres gostam. Já os homens héteros ficam assim. "Não sei, será que é por aí?"
Não sei se deixei claro o filme, mas não tô falando que homem hétero branco não pode ter poder. Só estou falando: "vamos dividir, gente". Quando a gente amplia o poder para outros protagonistas, como mulheres, indígenas, negros, LGBTQIA+, a gente aumenta a inteligência do mundo, do nosso planeta.
Mas incomodar também é um bom sinal, não? Sem incômodo a gente não muda.
Concordo plenamente. Eu era um gay homofóbico. Não sei se por ser da classe alta paulistana, mas eu era machista e homofóbico, Já ouvi de amigas e amigos da comunidade negra, coisas que na hora eu pensei: "o que te fiz?" Mas depois vi que eles tinham razão.
O desconforto é positivo, não tem como crescer sem ter dor de crescimento. Só que esse desconforto não for calibrado, você perde o seu amigo, o seu familiar. Você tem que incomodar mas de uma maneira que não faça a pessoa levantar e não querer mais conversar com você.
No filme, e em um depoimento publicado na revista "Piauí", você conta que foi estuprado. É mais difícil para homens falar sobre abuso?
Abri um pouco da minha vida porque aprendi com um vídeo que fiz sobre sair do armário, que ajuda as pessoas. Recebi muitas mensagens de gays que estavam pensando em suicídio, de mães evangélicas. Entendi que isso era uma contribuição.
O que é muito cruel é o gaslighting, as pessoas duvidarem de você. Você ter a sua dor questionada, por isso que a gente tem que falar. Essa é minha contribuição para romper esse estigma, ajudar não só as vítimas, mas também esse debate, essa discussão.
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