Emily em Paris, Anitta e a onda do trisal. Tem que fazer pra ser moderna?
Semana passada rolou uma espécie de hype sobre trisal na internet: Anitta deu uma entrevista falando que se esbaldou num relacionamento de trisal com dois alemães e o público inundou o twitter shippando o trisal da série "Emily em Paris", uma das mais assistidas no Netflix. Já dando um mini spoiller, na série Emily se envolve com seu vizinho Gabriel e, mais tarde descobre que o cara é comprometido e que a namorada dele é uma de suas únicas amigas parisienses. Um selinho acidental ao invés de um beijo na bochecha faz parte da cena em que elas se conhecem e a possibilidade da amizade colorida e de uma relação a três têm feito a imaginação da audiência voar.
Acho maravilhoso que as pessoas possam viver sua sexualidade e suas relações amorosas do jeito que bem entenderem. Ter personalidades públicas como Anitta falando abertamente sobre isso e contar com a possibilidade de séries populares retratarem outros formatos de relação para além dos casais monogâmicos "felizes para sempre" é uma forma de aculturar as pessoas sobre nossa liberdade de escolha e minimizar os julgamentos. Mas é o discurso da liberdade que quero problematizar aqui: Não vale levantarmos bandeira sobre a liberdade sexual se julgarmos mulheres que escolhem não beijar outras mulheres, não abrir a relação ou não transar de primeira, como menos livres.
Faço esse ponto com conhecimento de causa: eu particularmente não curto transar no primeiro encontro, por exemplo. Já entendi que pra mim bate errado: eu não me sinto tão à vontade, prefiro quando já tem mais um pouquinho de intimidade. Respeito muito quem tem vontade e faz sexo casual, mas aprendi que pra mim não rola (é tipo álcool, com o passar dos anos você saca o quanto dá pra beber sem rolar ressaca no dia seguinte e começa a curtir suas bebedeiras no seu limite). E por mais que eu não julgue o comportamento dos outros, já ouvi de muitos boys e até de alguns amigos que essa era uma atitude moralista e ultrapassada; que eu era careta. Como se pra me provar mulher descolada e moderna eu tivesse que topar esse pacote do sexo casual e da sexualidade fluida.
Aqui entra um outro conceito que eu quero trucar: "a mulher moderna". Por que exatamente precisamos nos afirmar como "mulheres modernas" e o que exatamente isso significa?
Pra ser moderna tem que pegar sem se apegar sempre?
Esse conceito de "mulher moderna", aparentemente tão feminista pode ocultar uma lógica bem machista se usada apenas como papinho no Tinder. "Já transei no 1o encontro mesmo não estando tão a fim só pra mostrar que eu era moderna e descolada pro boy e no final senti que eu tava me violentando" nos escreveu uma seguidora. Outra nos contou que topou abrir a relação com o namorado mesmo não tendo vontade de ficar com outras pessoas só para que o cara não terminasse com ela (pois ele estava querendo sair com mais gente e experimentar ménages). No fim ela acabou machucada, com ciúmes e frustrada. Na minha opinião se fazer de livre pra manter a relação é cilada.
Parece que de alguma forma o tal conceito da mulher moderna quer transmitir a ideia de que esta é uma mulher independente, leve, que não vai pesar no cara ou cobrar definições da relação. A tal mulher moderna não é carente nem desesperada para namorar o primeiro homem que sair 3 dates seguidos com ela.
Mas será que só existem esses dois pólos: Ou você é super moderna experimentativa ou você é careta carente? Não né? Mas muitos homens e mulheres ainda julgam as pessoas assim. "Já ouvi de um cara com quem estava saindo que 'deixar claro o que se quer da relação e sair com uma pessoa por vez é careta'. Descolado é deixar fluir, sem papos nem amarras" nos escreveu outra seguidora. Se eu luto para que as pessoas com relações abertas não sejam julgadas porque o povo ainda se sente no direito de julgar quem não quer experimentar?
O famigerado julgamento ataca para todos os lados
Parece que não importa qual seja a sua escolha: fazer trisal ou não fazer, você vai ser julgada nas 2 pontas: ou você é devassa ou você é careta. Em suma, aos olhos da sociedade a mulher está sempre errada independente da escolha que ela fizer... e esses olhos muitas vezes são olhos de outras mulheres.
Vale lembrar que esse julgamento acaba sendo uma forma de controle: Se não prestarmos atenção, paramos de ouvir nossos desejos sobre o que fazer na cama ou nos dates e começamos a fazer (ou não fazer coisas) para impressionar, passar uma imagem de bem-resolvida ou de mulher focada.
A liberdade do não
"Ser livre não é sair fazendo 'de tudo' mas sim escolher o que você quer e, principalmente o que você não quer" disse o psicanalista Flávio Gikovate. Essa é pra mim a real liberdade e o real empoderamento em relação a nossa vida sexual e amorosa: podermos entender quais são nossos desejos genuínos, o que esperamos das relações, o que nos dá prazer e priorizarmos estas vontades e colocarmos as mesmas com clareza para nossos parceiros.
No Soltos s.a. batalhamos para que cada um possa ter cada vez mais autonomia afetiva e isso significa exatamente se conhecer, se respeitar e pautar suas escolhas amorosas e sexuais a partir do que te move agora.
E, vale lembrar, não é por que você lida com sua sexualidade desta maneira que as escolhas e condutas de mulheres que seguem outros caminhos está errada ou é mais ou menos moderna. Temos que lutar para que a Anitta possa fazer trisal e eu possa não fazer trisal e que essas duas formas de amor sejam igualmente valiosas, sem que a gente seja colocada nas caixinhas da depravada ou da careta. Ao invés de questionarmos a tal modernidade, por que não militarmos pela felicidade da mulher?
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