Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Carnaval de 2022 foi privatizado e com tensão. Há esperança para abril?
Para ler ouvindo: "Retalho de Cetim" - Benito de Paula
Inconformada com a privatização da maior festa popular do país, contrariadíssima, comprei ingresso para um baile de carnaval. De um bloco com gente querida, música boa, astral animado e respeitoso, com cumprimento das normas sanitárias vigentes. Um salão fechado, ocupado por menos do que o total da capacidade, área aberta e uso sugerido de máscara. Recém-vacinada com a terceira dose, apesar de tudo, me parecia razoável.
Minha relação com o Carnaval foi se transformando ao logo dos anos. Fui uma adolescente carnavalesca de matinês e bailes em clubes (já aturei muito hino do São Paulo em nome da folia), uma jovem indie e pretensiosa que torcia o nariz para fantasias e, sobretudo, que trabalhava no Carnaval, e no tempo livre evitava tamborins.
Meu reapaixonamento pelo Carnaval está instrinsecamente ligado à ocupação das ruas e ao caráter democrático e popular dele. De modo que fiquei mais íntima das carnavalices de uns dez anos pra cá. E todo ano a gente faz tudo sempre igual: vai chegando a data, os amigos começam a se ouriçar, mandar calendário de blocos e recebem sempre mais ou menos a mesma resposta: "Ai, gente, não to muito animada com carnaval esse ano". Corta para eu subindo e descendo a rua Augusta atrás de uma ou duas perucas e algum glitter no sábado de carnaval, dormindo pouco e sassaricando muito, contente. Uma foliã moderada, pois.
Depois de dois anos de pandemia de coronavírus, mesmo com vacinação avançada e em fase menos severa, as prefeituras abriram mão da sua responsabilidade pela organização do carnaval gratuito na rua. Mas permitiram e não fiscalizaram as condições sanitárias nas festas privadas. Na prática, o recado foi: se pagasse, não teria problema haver aglomeração. E assim o poder público negou o direito à diversão à maioria da população do país.
Pra continuar daqui ouvindo: "Faraó" - Margareth Menezes
Absolutamente consciente, caprichei na maquiagem, vesti a peruca, a máscara e fui. Encontrei pessoas belamente fantasiadas, adereçadas, brilhantes, expansivas e contentes. Sorri, adorei e me senti cometendo uma contravenção. Respirei. Abracei gente querida, beberiquei, ri demais, cantei em coro de olhos fechados, dancei. Mas não teve consciência e nem saudade do Carnaval que me fizessem relaxar completamente.
Tensão é algo que a gente sente no corpo. Invejei profundamente quem se jogou, queria demais. Será que faço parte do contingente de pessoas que desaprenderam a socializar na pandemia? Talvez eu tenha me transformado na criatura que se sente estressada em grandes grupos. Será que sou uma desrespeitosa insensível por tentar aproveitar o carnaval enquanto uma parte do mundo está em guerra e tanta gente aqui ainda sofre com as consequências da covid?
Fico satisfeita em ver que teve quem conseguisse manter ou recuperar a alegria e a capacidade de socialização, apesar de tudo. Quanta gente foi viver o Carnaval na rua, mesmo sem amparo e organização do poder público. Pareceu uma reivindicação do direito à alegria. Só um pouquinho. Rapidinho aqui no meio dessa tragédia. Um grito contra o moralismo travestido de preocupação de parte da nossa sociedade.
Em condições normais de temperatura e pressão, é dessa energia que vive meu espírito carnavalesco. De gente junta na rua, do caráter público, coletivo e popular da festa, da celebração da vida, dos encontros, da liberdade, do deleite, da diversão, inclusive para seguir em frente.
De madrugada, lá pelas 3h, aproveitei a carona de um amigo e voltei para casa, frustrada com o baile que foi um eterno esquenta. Ficou prometendo, prometendo, mas nunca aconteceu, não explodiu dentro de mim. Pendurei a peruca e passei a ter esperança no Carnaval fora de época em abril. Se a covid deixar a alegria nos contagiar.
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