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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com vida social voltando ao normal, parece que estamos piores do que antes

A pandemia nos deixou um trauma coletivo que pode se manifestar em forma de melancolia - Shutterstock
A pandemia nos deixou um trauma coletivo que pode se manifestar em forma de melancolia Imagem: Shutterstock

Colunista do UOL

25/03/2022 04h00

Voltou o trabalho presencial. Voltou a vida social. Voltaram as crianças correndo pelo pátio das escolas. Voltaram as sessões de cinema, as peças de teatro, os bares, os shows, as reuniões de amigos e os sambas. Voltou até festival de música, que é das coisas que mais gosto na vida. Só não voltaram a resistência e a energia que eu tinha pré-pandemia. Sinto que envelheci 20 anos em dois. E essa "volta" em 2022, apesar de animadora e feliz, tem acabado comigo. Tenho reparado ao meu redor: já está todo mundo exausto de novo.

Desde março de 2020, tenho lido muito e ouvido alguns pensadores e estudiosos que esperavam que a pandemia nos chacoalhasse e nos despertasse para um novo modo de vida menos estafante, mais próximo da natureza, que respeitasse os limites físicos das pessoas.

O antropólogo Ailton Krenak, em "Ideias para Adiar o Fim do Mundo" (ed. Companhia das Letras), livro baseado em palestras e entrevistas dele nos últimos anos e lançado durante a pandemia, diz: "Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Depois disso tudo, as pessoas vão querer disputar de novo o seu oxigênio com dezenas de colegas num espaço pequeno de trabalho. As mudanças já estão em gestação. Não faz sentido que, para trabalhar, uma mulher tenha de deixar seus filhos com outra pessoa. Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os carros, todas as máquinas ao mesmo tempo."

Pois, Krenak, aqui estamos nós, dois anos e quase 700 mil mortos depois, desobrigados de usar máscaras, parados no trânsito de São Paulo, no transporte público, dentro de carros populares que custam R$ 80 mil, atrasados para deixar crianças na escola e em seguida seguir para nosso local de trabalho, onde teremos mil reuniões e permaneceremos por 8, 10, 12 horas produzindo, mas também pensando no que prepararemos para o jantar, fazendo lista de compras, pagando contas. Tudo isso com a inflação de dois dígitos e o nosso dinheiro valendo 10% menos do que no ano passado, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Nesse contexto, depois da terceira dose da vacina, me senti segura para voltar a frequentar lugares, a socializar, a conversar olhando no olho em vez de marcar um horário na tela. Desmedidamente voltei a encontrar gente com quem eu gosto de estar, de conversar, de conviver, e passei a encontrar novas pessoas. E me transformei naquilo que jurei que não voltaria a ser, caso não precisasse: a pessoa com agenda lotada, cheia de compromissos sociais e profissionais, aquela que exclama "ai, minha vida está uma correria". Não me orgulho. Resultado: estou exausta. E falida, porque está tudo custando o olho da cara.

Socializar também cansa. É uma parada energética mesmo, de muito dispêndio e pouca reserva. Na fala a gente gasta energia vital. Quanto mais falamos, menos energia temos. Quanto mais encontros e mais conversa, menos energia e mais cansaço. Credo, que delícia. "Saí vivendo como se não houvesse amanhã", me disse uma amiga. "Fico eufórica para encontrar as pessoas, mas depois fico exausta", falou outra. "Me sinto em uma fase de adaptação". Estaremos nós enferrujados? Sinto que pode ser falta de prática mesmo. Do Carnaval para cá já me sinto mais à vontade, mais flexível, menos tensa, mais animada. Afinal, os encontros também nos nutrem.

De onde vem essa estafa? Para além do cansaço das atividades, dos deslocamentos da vida em sociedade e da piora visível da qualidade de vida no Brasil, a pandemia nos deixou um trauma coletivo que pode se manifestar em forma de melancolia.

O psicanalista e filósofo Joel Birman, autor de "O Trauma na Pandemia do Coronavírus" (ed. Civilização Brasileira), em uma entrevista que nos deu em agosto do ano passado no "Estúdio CBN", dizia que o Brasil é um país melancolizado porque não ritualizou coletivamente seus mortos, não lidou com o luto de seus milhares de mortos.

Citando o filósofo francês Jean-Paul Sartre, Birman diz que nós estamos carregando a morte da alma, que é essa melancolia que nos acossava na época e que, segundo ele, nos acompanhará coletivamente pelos próximos anos. Isso é forte e marcante. E não pode ser desconsiderado nesse mal-estar. Temos percebido isso? Temos nos importado com isso? Ou apenas nos jogamos de volta no mundo presencialmente, da mesma maneira como estávamos acostumados a fazer e como se os últimos dois anos não tivessem nos transformado profundamente?

Voltamos àquele ritmo, Krenak. Ligamos todos os carros e todas as máquinas ao mesmo tempo como se fôssemos os mesmos de dois anos atrás, que já não estava bom. Mas não somos. Parece que pioramos, está tudo bem mais difícil e talvez a gente nem tenha percebido, ainda, o quanto.

Para ler: "Parece Pausa, Mas É Travessia", Sabrina Abreu, ed. Gulliver

"Ideias Para Adiar o Fim do Mundo", Ailton Krenak, ed. Companhia das Letras

"O Trauma da Pandemia do Coronavírus", Joel Birman, ed. Civilização Brasileira


Para ouvir: "Um Corpo No Mundo", Luedji Luna

"Lá Vou Eu", Zélia Duncan

"Vamos pra Rua", Maglore