Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Doce homenagem ao meu cinema de rua preferido em São Paulo, que vai fechar
Fui tomada por uma surpreendente nostalgia quando li que o anexo do Espaço Itaú, na rua Augusta, em São Paulo, vai fechar. Nossa relação foi de amor à primeira visita. A programação do cinema, voltada aos chamados "filmes de arte", combinava com a curiosidade e a pretensão que moravam em mim, uma jovem universitária de 20 e poucos anos, faminta por conhecimento, e com repertório cultural em formação.
Vi todos os títulos iranianos em cartaz dos anos 1990 até o começo dos anos 2000, quase sempre acompanhada dos amigos de faculdade, tão curiosos, cabeçudos e pretensiosos quanto eu. Depois de um Abbas Kiarostami, Mohsen ou Samira Makhmalbaf ou um Jafar Panahi, quase sempre emendávamos várias cervejas e uns petiscos para trocar ideias sobre o filme por horas. Todo fim de semana. Isso na época em que o banco que dava nome ao cinema —Unibanco— ainda existia e não tinha sido comprado.
O anexo do Espaço Itaú, com suas duas salas, é mais um cinema de rua que sucumbe à força da grana que ergue e destrói. Lá, na sala 4, vi Ney Matogrosso falar lindamente sobre "Olho Nu", que foi exibido em uma mostra de cinema. Minha preferida, no entanto, é a 5, que fica no primeiro andar, pequeniníssima, com aquelas poltronas largas e aconchegantes, onde já dei umas pescadas e tirei alguns breves cochilos, vencida pelo cansaço da maratona diária e pela andança frenética entre uma sala e outra, quase sempre atrasada para sessões da Mostra.
Ao contrário de muito lugar na cidade, aquele não é feito apenas para pares. Tenho lembranças muito vívidas de uma jovem recém-solteira, que se sentia esquisita por estar sozinha depois de tanto tempo vivendo em dupla, mas que, ali, ficava confortável. Me lembro de desejar demais viver em uma bolha com meus livros, filmes, músicas, minhas escritas, dúvidas, meus pensamentos confusos e nada mais. Aquela era a minha bolha.
Gostava das sessões no meio da tarde. Chegava bem antes, pisava naquele piso belíssimo, comprava ingresso, ocupava uma das mesas do Café Fellini com meu livrinho, meu café, meu bolo de iogurte e todas as minhas angústias. Tenho lembranças de muitas horas em tardes chuvosas ali.
Aquela calçada do número 1.470 já cansou de me ver chorar, recém-saída da sala, fumando um cigarro atrás do outro (não fumem, é uma merda e difícil de parar), tentando processar o que acabara de assistir.
Tenho lembranças de filmes muito tristes, dos que tinha certeza que eram sobre a minha vida, feitos para mim (quem nunca?), dos enredos cabeçudos de que eu não gostava e sobre os quais precisava conversar com alguém.
Tenho memórias de filmes que me davam vontade de sair dançando pela cidade, contente e cheia de esperança; das vezes que saí meio desnorteada pela desorganização que o filme tinha provocado em mim. Da surpresa de encontrar conhecidos que passavam por ali bem na hora do cigarro ou do choro, da correria de entra e sai de sala, de atravessar a rua e comer um pedaço de pizza. Lembrança das idas àquele cinema como encontro, amoroso ou não, como cura, como celebração ou só como diversão.
Existir nesse mundão de meu Deus por mais de quatro décadas deve ser assim, então. Solto um suspiro profundo. Os lugares emblemáticos da nossa vida desaparecem, somem, se transformam em outra coisa. Viram memória.
Para ouvir:
"Virtual Insanity", Jamiroquai
"Malandragem", Cassia Eller
"Hard to Explain", The Strokes
"Seventeen", Ladytron
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