Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por que a insegurança mexe mais com as mulheres do que com os homens?
Quando encarei a deliciosa missão de ocupar esse espaço tinha uma questão que me preocupava: a periodicidade. Pensava no tamanho do desafio que seria ter de escrever coisas interessantes ou desenvolver ideias geniais toda semana. Imediatamente, uma legenda em neon vermelho passa dentro da minha cabeça: ninguém tem ideias geniais toda semana. Ok, sem esperar o melhor texto da minha vida a cada sete dias, parece razoável, vamos em frente. E assim temos vindo até aqui: experimentando, tropeçando na irregularidade, gostando mais de umas coisas do que de outras, me divertindo e prestando atenção no que vem de quem lê. Até este dia: o dia em que não tenho assunto.
Nenhuma ideia genial. Zero sacadas boas. Tampouco uminha mais ou menos. Tem sido emocionalmente difícil. O Brasil, a população de rua aumentando tragicamente, essa guerra estúpida, o caráter surreal de uma comunidade yanomami inteira desaparecer e o país continuar funcionando - mal - como se nada tivesse acontecido. É tudo triste e revoltante demais para ter inspirações oxigenadas.
Poderia escrever sobre tudo isso? Poderia. Mas queria respirar um pouco. Já sei, vou desenvolver o não saber sobre o que escrever. "Ai, nãããão, parece um pouco ridículo", grita uma voz, velha conhecida de muitas mulheres.
Apesar de angustiante, ter dúvidas é um bom motor. E debatê-las, desdobrá-las até que elas virem outra coisa. Ainda que sejam novas dúvidas. Clamei por quem sempre clamo nesta hora difícil de pane: Camila, a editora desta coluna. Três páginas de conversa depois, tínhamos mais perguntas. Será que essa minicrise pode ser questão de gênero em alguma medida? Homens que escrevem se sentem sem ideias, inseguros e expõem isso? Ou é só a impostora gritando aqui dentro da minha cabeça?
Aí chamei quem faz isso lindamente desde quase sempre e, certamente, imaginei, já viveu episódios de crise criativa. Pergunto ao Antonio Prata: "Você, um homem que escreve regularmente há bastante tempo, sofre disso? Acha que não tem assunto? E como sai dessa?". Antonio gentilmente me responde que tudo dá crônica. "Tudo. Você só precisa de um tempo para refletir sobre o tema. Que tal escrever sobre isso? Você diz que não tinha tema. Eu digo que tudo é tema. Basta pensar um pouco. Sopesar o assunto. Olhá-lo por diferentes ângulos."
Apostei em diferentes olhos.
Camila: "Sabe o que eu acho curioso? Ele que é homem acha que dá para fazer crônica com tudo. Você, mulher, acha que nada é assunto".
Argumento: Antonio é um profissional do ramo, dos melhores. Eu, não. Ainda sou mirim. Talvez isso explique a confiança dele e a minha insegurança em expor essa crise e/ou escrever - bem — sobre qualquer coisa e estar seguro disso. Se o assunto fosse "apresentar um programa de rádio" talvez a situação se invertesse.
Camila: "Se fosse um homem você diria que é mirim? Não consigo não ver um filtro de gênero nisso".
Respondo que provavelmente não me referiria a mim como mirim, porque possivelmente fosse um convencido sem limites. Voz de Camila ecoa na minha cabeça. Disputa com a da impostora que esbraveja: "Q ue merda ocupar espaço com falta de assunto, Tatiana". Olha, acho que todo mundo tem razão. Acalmo os meus temores e concordo com tudo. Camila, Antonio, mas, agora que estou achando interessante mesmo essa conversa, concordo um pouco menos com a impostora. Sobre ela fui saber com a jornalista Daniela Arrais, que estuda e fala sobre a "síndrome da impostora".
Daniela explica que a expressão foi cunhada no fim dos anos 1970 por duas pesquisadoras americanas que fizeram um estudo com mais de 150 mulheres em posições de destaque. Elas queriam entender se, a despeito das evidências, essas mulheres se sentiam uma fraude ou acreditavam que o sucesso delas era sorte ou determinado por um fator aleatório. "Sabe quando a gente fala 'eu era a pessoa certa no lugar certo'? Isso pode até ser legal se a gente pensar nas coincidências da vida, timing e tudo. Mas quantas vezes a gente diz isso para invalidar o nosso próprio talento, o quanto a gente é boa?"
A jornalista diz que trata-se de uma tendência de comportamento que acomete sobretudo mulheres. "Obviamente aparece um homem para dizer: 'Eu também sinto isso'. A diferença está no patriarcado. A gente foi socializada para ficar em casa cuidando dos nossos filhos. Esse é um trabalho gigantesco e fundamental para a sociedade girar. Mas e se a gente ocupar outros espaços? E se a gente quiser trabalhar? E se a gente quiser trabalhar e cuidar dos filhos? Mulheres são constantemente diminuídas de seus lugares. E digo isso como mulher branca, sabendo que acesso mais espaços do que mulheres negras. Então, além da questão de gênero, tem também o recorte de raça, o que é muito importante quando falamos de síndrome da impostora."
Daniela explica assim a diferença entre a segurança do cronista experiente e a insegurança da mulher recém-colunista. E o mais importante é a gente saber que essa questão não é individual, é coletiva.
"Uma grande chave de mudança de comportamento é essa: o problema não é você. É uma sociedade que espera que a gente fique silenciada, pequena, dentro de casa, sem ocupar espaços. Ou seja, a grande questão é estrutural. Toda vez que você se sentir uma fraude, sentir que você não dá conta do recado, lembra que tem uma estrutura inteira querendo que você se sinta assim. Você falar, escrever e ocupar espaço é se ajudar e ajudar toda uma estrutura da sociedade para que a gente avance."
A impostora é nada menos do que o patriarcado dizendo que a gente não pode. Mas a gente pode, sim.
Antonio também me sugeriu o desafio de eleger um entre três temas e escrever sobre o escolhido. Esse zap —com duplo sentido mesmo— guardarei para grudar na testa da impostora em uma eventual nova crise. Obrigada pelo impulso!
Chegamos até aqui e parece que logramos êxito em discutir a falta de assunto, hein? "Somos as palavras que trocamos", diz a plaquinha de metal encostada aqui na estante. Mas poderia ser a voz do além da Camila.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.