Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
É insuportável ser mulher neste mundo hipócrita e misógino que nos odeia
É insuportável ser mulher no Brasil. Um país que expõe a intimidade de violência sexual sofrida por uma jovem atriz de 21 anos, transforma a vítima em culpada, a revitimiza e a joga aos leões no tribunal sem lei da internet. Ética, artigo em extinção. Seja na enfermagem, na medicina, na comunicação.
Uma sucessão de absurdos inclassificáveis apontados em muitos prismas pelas brilhantes colegas colunistas de Universa.
As violências são sucessivas, mas isso parece não importar. A nossa vida não vale muito mais do que base para a criação de narrativas religiosas e eleitoreiras. Ou para a manipulação emocional da audiência das redes atrás de cliques. É nojento.
Na semana passada, uma juíza, concursada, que deveria zelar pela vida de uma menina de 11 anos que foi estuprada, aplicou suas convicções pessoais em vez da lei. Uma criança de 11 anos foi estuprada. Uma criança de 11 anos estava gestando um feto fruto de uma violência sexual. Amparada pela lei, ela tem o direito de não seguir com a gestação e continuar sendo criança. E criança não é mãe. A juíza, que tem como obrigação constitucional acolher e proteger essa criança, tentou convencê-la a ser mãe aos 11 anos.
As violências são sucessivas, mas isso parece não importar. Afinal, a nossa vida não vale nada além de exemplo sobre o qual se criam teorias que vão perpetuar essa violência contra nós.
Repito: é insuportável. Como disse a escritora Eliana Alvez Cruz: "Não há decisão certa, ao que parece, para uma mulher. Assim como não existe idade certa, ao que tudo indica. A decisão certa e a idade correta é nascer homem".
Também na semana passada, o desembargador Salles Rossi, da 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, acolheu a tese de Jair Bolsonaro no processo em que a jornalista Patricia Campos Mello o acusa de ofender sua honra.
Bolsonaro foi condenado em primeira instância por fazer uma insinuação sexual contra Patrícia, em 2020, usando a palavra "furo" —no jargão jornalístico significa "informação exclusiva", no repertório do presidente da República, significa "cu". Mas o doutor Salles Rossi não viu nenhuma conotação sexual aqui, não, circulando, circulando. A turma julgadora desse caso no TJ-SP é formada por cinco desembargadores: quatro homens, uma mulher. O placar está em dois a um a favor da jornalista.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, a Suprema Corte, de maioria masculina e conservadora, achou por bem revogar a garantia do direito ao aborto legal que havia sido conquistado de maneira histórica em 1973. Agora, cada Estado —cujas cortes são majoritariamente masculinas— vai decidir sobre o direito das mulheres à interrupção da gravidez, o que vai impactar fortemente as mulheres mais pobres. O ano é 2022 e homens continuam decidindo sobre os corpos e os direitos das mulheres sem se importar com a vida delas.
É revoltante. E quando nos revoltamos somos tachadas de descontroladas e histéricas. Não nos cobrem moderação, doçura nem simpatia. É insuportável ser mulher nesse mundo hipócrita e misógino que nos odeia, que faz de tudo para nos punir, machucar, matar. A revolta e a raiva são profundamente justificadas e legítimas. Parem de nos violentar!
Para ler: "O Acontecimento", Anne Ernaux
"Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: Fatos e Reflexões", Camila Giugliani, Angela Ester Ruschel, Gregório Corrêa Patuzzi, Maura Carolina Belomé da Silva
Para assistir: "O Acontecimento", de Audrey Diwan, baseado no livro homônimo de Annie Ernaux, em cartaz no Festival Varilux de Cinema Francês.
P.S.: Antecipamos a coluna e publicamos o texto excepcionalmente nesta segunda-feira (27) porque não dá para ter a semana de retrocesso que tivemos e seguir como se nada houvesse. Semana que vem, espero voltar à nossa programação normal, com texto às sextas-feiras.
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