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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vaguei por 3 cidades em 40 dias e constatei: sou uma mulher da rua

"Sempre achei que reivindicar segurança era coisa de velhote reacionário. Até me dar conta de que sou uma mulher no mundo" - Getty Images
"Sempre achei que reivindicar segurança era coisa de velhote reacionário. Até me dar conta de que sou uma mulher no mundo" Imagem: Getty Images

Tatiana Vasconcellos

Colunista do UOL

08/07/2022 04h00

Sempre achei que reivindicar segurança era coisa de velhote reacionário. Até me dar conta de que sou uma mulher no mundo. Flanei por três cidades nos últimos 40 dias. São Paulo, onde nasci, vivo e que exploro desde sempre; Barcelona, na Espanha, para onde voltei para 10 dias de férias; e Lisboa, em Portugal, que também havia visitado e onde estou baseada por um período.

Me senti mais segura em Lisboa do que em Barcelona e mais segura em Barcelona do que em São Paulo ao usar transporte e a pé depois das 10 da noite, por exemplo. Apesar de haver gente na rua até bem tarde, por uma ou outra mais vazia a sensação de insegurança aumenta, mesmo em bairros considerados seguros. O que determina essa sensação? Fui perguntar para a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, que, de cara citou a norte-americana Jane Jacobs. Segundo a urbanista radicada em Nova Iorque, a possibilidade de segurança em uma cidade está na existência dos "olhos da rua". "Significa andar por lugares em que há gente vendo você o tempo todo, das janelas ou circulando. A cidade fica tão mais insegura quanto mais muros altíssimos ela tem, onde não tem nada, ninguém é visto e, portanto, não há esse controle social da existência das pessoas no espaço público".

Em áreas predominantemente residenciais de Lisboa prestei atenção em quem está nas ruas. E segundo o DataTati, sem dúvida são os homens. Reunidos ou não, se permitem estar à toa, apenas existindo. Me olham curiosos quando percebem que também estou à toa, como eles. Mulheres vi algumas, em geral atarefadas: carregando compras, cuidando de crianças ou de idosos.

"O confinamento das mulheres nas tarefas de casa as tira de circulação nas ruas. Vamos pensar que lugar de mulher não é no lar, lugar de mulher é na rua. A própria expressão 'mulher da rua' é pejorativa, as mulheres que estão na rua são as mulheres de 'má fama'. A presença de mulheres no espaço público é fundamental para dar mais segurança a outras mulheres para estarem ali" Raquel Rolnik

Direitos iguais?

Ano passado fiz uma viagem de carro de dois dias de Minas Gerais à Bahia. Em uma cidadezinha no interior de Minas, na parada para pernoite, um dos homens do grupo se despede depois do jantar e algumas cervejas: "vou dar uma volta por aí, pela cidade". Invejei a liberdade de uma pessoa flanar por uma cidade desconhecida sem nem pensar em risco de violência sexual, por exemplo. "As mulheres não têm o mesmo direito à cidade que os homens, porque os modelos de cidades são patriarcais, não foram construídos a partir das necessidades específicas das mulheres. Em sua grande maioria são projetadas por homens e para homens, quase sempre priorizando em suas concepções a circulação para o trabalho em detrimento das necessidades de reprodução da vida, que em geral fica por conta das mulheres", diz Raquel.

Flanar, flutuar, olhar de cima. Um observador quase onisciente, um drone em câmera lenta. Que vive em outro tempo, num estado desajustado de existir. "Do verbo francês flâner, o flâneur, 'aquele que vagueia a esmo', nasceu na primeira metade do século 19, nas passages de Paris recobertas de aço e vidro", contextualiza a autora americana radicada na capital francesa Lauren Elkin em "Flâneuse" (ed. Fósforo). E essa figura, o flâneur, logo ganhou um gênero. "Figura de privilégio e ócio masculino, com tempo e dinheiro e nenhuma responsabilidade imediata que demande sua atenção, o flâneur entende a cidade como poucos, pois memorizou-a com os pés. Cada esquina, cada viela, cada escada é capaz de mergulhá-lo numa rêverie, um devaneio. O que aconteceu aqui? Quem passou por aqui? O que significa esse lugar? O flâneur, sintonizado com os acordes que vibram por toda a sua cidade, conhece sem saber."

Parece interessante. Mas cadê as mulheres a vagar? Lauren Elkin busca por elas em cinco cidades: Paris, Nova Iorque, Tóquio, Veneza e Londres e mescla suas impressões com pensamentos de autoras que a antecederam. Cheguei ao livro quando procurava fundamento teórico para observações parecidas.

Andar para reconhecer. Caminhar dá intimidade com os lugares. Quanto mais mulheres nas ruas, maior a sensação de segurança para que mais mulheres estejam nas ruas. Sejamos turistas nas nossas cidades. Sejamos mulheres de má fama. Vamos pra rua!


Para ler:
"Flâneuse", Lauren Elkin, ed. Fósforo
"Cidades Feministas - A luta por espaço em um mundo desenhado por homens", Leslie Kern, ed. Oficina Raquel

Para ouvir:
"Vamos Pra Rua" - Maglore
"Esquadros" - Adriana Calcanhoto