Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Nascida, criada e traumatizada em SP, acho estranho viver num lugar seguro
Nascida e criada em São Paulo há 44 anos, vivo pela primeira vez a experiência de morar num lugar seguro. Essa temporada em Lisboa, que chega agora na metade, tem me trazido outras referências de modos de vida, de ocupação do espaço público e me despertado sensações inéditas enquanto "mulher da rua".
Segurança é um tema recorrente para todos nós, no nosso país, mas tem particularidades quando se trata de mulheres. Homens têm medo de serem roubados, assaltados à mão armada, de sofrerem alguma violência física. Além de estarem sujeitas a tudo isso, mulheres têm medo de serem violentadas e/ou mortas. Por exercerem algo que deveria ser um direito inalienável: estar no mundo de maneira minimamente segura.
Ciente do meu conforto particular e das dores coletivas, quase desisto de escrever sobre violência x segurança. Penso nos confortos que chamamos de privilégio, mas que deveríamos chamar de "direitos". Então, decido ir em frente e compartilhar observações de onde estou hoje, composta por tudo o que me trouxe até aqui. Inclusive a sensação de que se não houver muito esforço a conquista é menos válida.
Me percebi traumatizada vivendo num lugar seguro.
A violência traumatiza. Viver em um ambiente sabidamente violento exige um estado de alerta permanente. Dá para sentir no corpo enrijecido, encolhido ao caminhar pelas ruas, quase não é possível relaxar. Como se comportar em um lugar que não oferece risco? Como se toma consciência e de que maneira seu corpo entende que está em um ambiente seguro? Parece um clichê, e é —os clichês existem porque são verdadeiros.
Amigas brasileiras —porque somos muitos por aqui— contam que levaram tempo para se sentirem confortáveis nas ruas, para entender que era ok caminhar por aí sozinhas a qualquer hora. Mas elas também sabem os lugares que devem evitar. Algo que a recém-chegada aqui descobriu na prática, quando exercitava seu direito de ir e vir e saboreava essa sensação deliciosa de liberdade.
Me enfiei em um beco vazio demais, estreito demais, e vi pessoas usando crack ou desesperadas caçando uma pedrinha no chão. Aparentemente um homem na entrada do beco tentou me dizer algo que não decifrei. Acelerei o passo e fui sem olhar para trás. Cheguei ao meu destino impressionada, arfante, porém ilesa.
Nascida, criada e traumatizada em São Paulo, entendo que definitivamente segurança é um critério determinante quando a gente é mulher. Num evento de música ao ar livre nos jardins de um museu, aberto ao público, percebo um monte de crianças acompanhando seus pais, correndo pela grama, dançando, até dormindo. Comento com uma amiga sobre o astral e a graça dos pequerruchos e a sábia diz: ambiente com criança é ambiente seguro, inclusive para mulheres. Em ambientes seguros, podemos relaxar e nos deleitar.
Levo ao ar na Rádio CBN a fala de uma mulher cujo filho foi assassinado pela polícia numa comunidade do Rio. "Um tiro na nuca! Precisava atirar para matar? Não podia atirar na perna, no braço?", ela pergunta. Acho que é o caso de todos nós perguntarmos: é razoável que a gente, enquanto sociedade, esteja tão acostumado com a violência que em vez de gritar pelo fim dela pedimos para que, pelo menos, não seja mortal? A violência traumatiza. Viver em menor risco não deveria ser privilégio, e sim um direito.
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