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'Volta pra tua terra': 5 mulheres relatam conviver com racismo em Portugal
"Tive uma sensação de impotência por perceber que há ali um privilégio branco, inerente à Giovanna, que eu não tenho e, portanto, se fosse eu no lugar dela sei que dificilmente poderia defender meus filhos, se os tivesse, da mesma forma que ela. Por outro lado, me lembrei dos meus pais. Aconteceu mais de uma vez comigo, quando era criança, de os meus pais terem de me defender de situações de racismo e eles acabavam sendo um bocadinho desacreditados. Tudo sempre era atribuído ao meu comportamento e às minhas atitudes e nunca ao comportamento racista dos outros." Assim como Titi e Bless, a ativista Mafalda Fernandes, 25 anos, é filha de pais brancos. Nasceu e vive na cidade do Porto.
No último fim de semana, os filhos dos atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso foram ofendidos por uma mulher racista, na Costa da Caparica, Portugal. "Na maior parte das vezes quando alguém me ofendia eu partia para a defesa. Insultava de volta e tentava bater na pessoa. Meus pais tinham de me defender numa situação posterior ao racismo que eu sofria na escola, por exemplo, porque o que eu dizia era descredibilizado.", lembra Mafalda.
A ativista percebe como comuns casos de racismo como esse. "Estamos a falar sempre de situações de racismo explícito, direto e de confronto. Mas a mulher negra tem dificuldade para arranjar emprego, moradia, para se relacionar afetivamente, porque sempre é sexualizada. Apesar de não ser muito aparente, o racismo tem um impacto enorme nas mulheres aqui", afirma.
No processo de me ambientar numa outra sociedade, com regras novas para mim, me interessei em saber dessa experiência para outras mulheres. Fui conversar com cinco mulheres negras e percebi que perguntar sobre a vivência delas no espaço público é puxar a ponta de um novelo imenso de preconceitos embrenhados nas estruturas de um país que não se reconhece racista, apesar de sua história evidenciar o contrário. O passado escravocrata português reverbera velada e cruelmente na sociedade atual e atravessa de forma violenta a vida das mulheres.
"Essa herança escravocrata pode ser bem visível quando se trata de assédio a mulheres negras no espaço público, sobretudo por homens brancos mais velhos. Está encarnado no modo de vida português, é camuflado e silencioso. Mulheres negras estão dentro de casa, nos comércios e serviços, em geral em trabalhos domésticos, de cuidado, limpeza e/ou atividades precárias", diz Neusa Sousa, 30 anos.
Ela é ativista no combate ao racismo e incentivadora do afroempreendedorismo em Portugal. Nasceu em São Tomé e Príncipe e vive em Lisboa desde os 10 anos. Mestranda em Estudos das Mulheres, pesquisa a questão racial no trabalho doméstico. "É muito usual vermos mulheres imigrantes africanas que chegaram cá nos anos 70, começaram a trabalhar como empregadas domésticas e a segunda e terceira gerações continuam a exercer essa mesma função. É bastante usual haver pessoas que cresceram no bairro de lata, fizeram família no bairro de lata e seus filhos estão no bairro de lata", diz Neusa, fazendo referência aos atuais bairros sociais, em geral na periferia de Lisboa e que concentram grande parte da comunidade negra.
O impacto do racismo é tão violento na estrutura de vida das mulheres que parece que andar na rua vira um item menos relevante na lista de preocupações. "A procura de emprego e habitação é muito difícil para pessoas negras. As pessoas dizem diretamente 'não trabalho com pretos', 'não arrendo minha casa a pretos'", conta a empreendedora social e consultora de diversidade, equidade e inclusão Mariama Injai.
Aos 35 anos, diz que "volta para tua terra" ela ouve desde pequena, é o insulto mais proferido nas ruas. Racista e xenofóbico, é como se mulheres negras não pudessem ser portuguesas —Mariama nasceu em Felgueiras, Portugal, filha de pais nascidos na Guiné-Bissau, e vive em Lisboa. "Começa aí o sentimento de não pertencer. Fazem-nos sentir 'os outros'."
Racismo e xenofobia andam bem juntos por aqui. A escritora, artista e performer Gisela Casimiro, 37 anos, nasceu na Guiné-Bissau, vive em Portugal desde os 4 anos e em Lisboa desde 2015. Numa conversa presencial, relatou casos de abordagens e toques inadequados, perseguição e assédio de homens e preconceitos de todo tipo no espaço público.
"Todos já ouvimos 'volta pra tua terra', mas para mim é ainda pior quando alguém me pergunta se eu sou de um certo país. Nunca partem do princípio de que eu possa ser daqui, portanto, essa terra não é minha. É ainda mais violento."
"Se não é fácil ser mulher negra no Brasil, fora é ainda mais duro", diz a cantora Neya Castro, 40 anos, sete deles em Lisboa. "Um samba que eu canto nas minhas rodas, 'Pra matar preconceito', fala muito sobre o que eu e muitas outras mulheres pretas passam na Europa. O nosso corpo dificilmente está associado ao positivo. Eu já sofri todo tipo de racismo aqui. Fui agredida verbalmente, acusada indevidamente, já me foi negada moradia, tudo isso por ser uma mulher preta", afirma Neya.
Em Portugal, racismo não é crime
Segundo as mulheres com quem conversei, trata-se de um problema que, apesar de estar embrenhado na sociedade portuguesa, é invisível na medida em que não é reconhecido nem nomeado. Nem pelas instituições sociais e governamentais, nem pela mídia. O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, condenou com veemência o ato racista contra Titi e Bless, mas lançou mão do "nem todo português", ressalvando que não se pode generalizar dizendo que todo português é racista.
Gisela Casimiro se propõe a ir além da superfície. "Qualquer situação de abuso, e racismo é uma forma de abuso, é silenciada, nunca é denunciada, porque é ignorada. Nós vemos isso com os abusos sexuais e com a violência doméstica —as vítimas são encorajadas a relevar o caso, a não participar, a não falar e isso alimenta o problema. É uma questão sistêmica. As instituições vivem do orgulho português, uma identidade baseada na história de expansão, descobrimentos e dominação. Que pode ser achamento, invasões, matanças, são muitas coisas. Esses foram os grandes feitos portugueses sobre os quais a identidade do país foi construída. Sem isso, o que fica? Como isso foi vendido dessa forma, do bom colonizador, tudo se torna ainda mais difícil."
Racismo não é crime em Portugal. "Não é possível medir o impacto do racismo porque não há estatísticas que afiram a quantidade de pessoas negras que vivem aqui, nem onde vivem, nem o que fazem ou que idades têm. Pelos dados, a vivência da população negra em Portugal é invisível. Daí eu ter criado a @quotidianodeumanegra, para partilhar a minha experiência, para que as pessoas possam identificar se aquilo também acontece com elas e para quem não tem ideia do que é a vivência da mulher negra em Portugal possa ter esse conhecimento", diz Mafalda Fernandes.
No fim do encontro com Gisela Casimiro, noto que as ruas do bairro levam nomes de ex-colônias portuguesas: Macau, Moçambique, Cabo Verde. "Eu estou cansada de me repetir, de explicar, de me justificar. Nós estamos cansadas. É difícil lutar, é difícil viver quando se está tão cansada."
Para ler:
"Erosão", Gisela Casimiro, Ed. Urutau.
"Esse Cabelo", Djaimilia Pereira de Almeida, ed. Todavia.
Para ouvir:
"Manga", disco de Mayra Andrade (um oferecimento amoroso a Renan Sukevicius)
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