Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Vera Iaconelli: 'Quem vê pós-pandemia como festa não entendeu a tragédia'
A agenda voltou a ficar frenética. Lançamentos, inaugurações, encontros, jantares, festivais, peças, festas. Arquibancadas lotadas, tudo muito, todos os dias. Retomamos nossa vida social como se não houvesse amanhã e como se não tivesse havido um vírus que matou quase 700 mil pessoas e enluta milhões no Brasil ainda hoje. Já seria tragédia o bastante. Mas isso aconteceu sob o pior governo da história recente do país, no meio de uma crise econômica.
"Estamos vindo de cansaços que dizem respeito à pandemia, ao gigantesco esforço que tivemos de fazer pra que a maioria pudesse sobreviver. Quando estamos nesse estado de alerta, a gente gasta tudo, se organiza pra passar por isso e, depois, vem a hora do respiro. Só que não houve esse momento de fato. Além disso, é uma pandemia num país em ebulição, passando por uma crise política, econômica e social seríssima. Então, não é que a gente passou pela pandemia, chegou a um oásis e agora vamos relaxar. Na realidade, mal passou a pandemia e o trabalho estava nos esperando mais do que nunca para recuperar o que se perdeu, os lutos das mortes ainda estão sendo trabalhados e uma decisão política gigantesca está à nossa frente. Isso tudo nos submete a um enorme estresse". Essa fala é da Vera Iaconelli, psicanalista e doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), que fui procurar em busca de explicações.
Tenho me observado e tentado perceber o comportamento das pessoas ao meu redor. Perguntei despretensiosamente nas redes sociais se as pessoas, sobretudo mulheres, se sentem as mesmas seres sociais de antes da pandemia começar. As respostas são tão desoladoras quanto parecidas: cansaço, bateria e habilidades sociais prejudicadas, crises em lugares cheios de gente, além de pressão para sair e interagir. Notei muita gente jovem sentir que envelheceu 15 anos em dois, laços afetivos perdidos ou intencionalmente desfeitos, temores, isolamento, insegurança e uma grave deterioração da saúde mental: ansiedade, depressão, fobias e burnout.
"A pandemia trouxe a justificativa perfeita para não ter de socializar com quem é desgastante ou com quem não nos interessa, ao mesmo tempo em que não pudemos estar com quem amamos. Mas esse outro lado das relações, mais burocrático, reaparece. Estamos reencontrando todo mundo o tempo todo em todo lugar, como era antes. Então, o que serviu de desculpa para que as pessoas pudessem preservar um pouco a sua energia pode cobrar seu preço agora", diz Vera.
Tenho funcionado em uma dinâmica circular de sístole e diástole energética. Euforia e expansão de emoções seguidas de exaustão e necessidade de recolhimento e descanso para reabastecer o reservatório.
"Essa euforia, uma certa melancolia, algum receio, um constrangimento, vem tudo junto numa experiência que é nova. Porque vivemos coisas, estamos elaborando essas coisas e os reencontros vão mostrar a posteriori o que ficou e o que não ficou daquela experiência. É a resposta do encontro com o outro que dá pra gente a medida do que estamos vivendo. Às vezes você vê no olho da pessoa uma aflição ou uma descontração que, por comparação, diz sobre você. 'Nossa, mas eu não tô me sentindo assim descontraída' ou 'Não tô me sentindo aflita'. Tem um estranhamento mútuo que vai da euforia pra melancolia. É um mal estar com que vamos ter de lidar", explica a psicanalista.
Estamos vivendo um fenômeno profundo. E, apesar de ainda lidarmos com um número de mortos equivalente a um avião caindo por dia no Brasil, rapidamente voltamos a correr na rodinha feito ratos pra fazer a engrenagem funcionar. Não paramos para tratar esses impactos, que são tão maiores quanto mais desprotegido é o grupo social afetado.
As mulheres, de maneira geral, mas principalmente transgêneros, negras, negras e pobres, negras e pobres que são mães, sempre e infelizmente as mais vulneráveis. "Elas já vinham de um lugar de subalternidade, exploração e violência, o que se agrava nessas crises. O que está em jogo aqui é a rede de cuidados com as crianças, os velhos e com todos os integrantes de uma família —e essas profissões relativas a cuidados (psicologia, educação, enfermagem) são mal remuneradas porque são ligadas à ideia de que a mulher tem que cuidar por amor. Apesar de haver muita colaboração entre elas, essa rede de cuidado se rompeu", ressalta a psicóloga.
O sofrimento decorrente de crises como esta é inevitavelmente coletivo. A maneira de elaborá-lo, aí sim, é pessoal e intransferível. Cada uma lida como pode, quando consegue, em meio a uma rotina cada vez mais custosa, fatigante e não raramente violenta. Vera Iaconelli reforça a necessidade de reconhecermos essa dor para que possamos curá-la conjuntamente. Todas nós fomos transformadas e estamos tateando uma nova forma de ser, cada uma à sua própria maneira, como dá conta. Tentando entender, na relação com o outro, o que se passa conosco. É uma experiência inédita para todas nós.
"E quem imaginou que o pós-pandemia ia ser festa não entendeu muito bem o que decorre de uma tragédia como essa, o luto que envolve e o tempo de recuperação que exige", arremata Vera Iaconelli. Um amigo querido resume sua tentativa de organizar esse turbilhão: "Só tô rindo com quem chorou comigo".
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