Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Uma roupa raramente é só uma roupa: como Sanna Marin vai à guerra
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Já faz muito tempo que eu me recuso a explicar ou justificar a importância do meu trabalho —sou personal stylist —ou argumentar com dez textos acadêmicos porque moda não é uma futilidade. Mas, para além disso, que é o óbvio, a roupa raramente é só uma roupa, roupa é comunicação, goste você ou não.
De maneira consciente ou não, o que todos nós escolhemos vestir reflete um momento, uma paixão, uma necessidade? A moda ajuda não só que a gente se vista da gente mesma, a moda facilita muito o caminho para sermos mais que uma pessoa física, mas uma persona, uma profissão, um cargo. Vale pensar que o Super Homem deixa de ser um mero civil ao tirar os óculos; médico vira semideus ao usar jaleco branco, juiz nem é juiz sem toga.
Os símbolos do vestir tem uma força imensa não só no consciente, mas também no imaginário coletivo.
Essa semana, uma imagem da primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, me chamou muito a atenção. Preciso admitir que ela é uma mulher sobre quem, de fato, sei muito pouco. Mas uma leitora me mandou uma foto dela e, na mesma hora, um alerta vermelho piscou na minha cabeça. A imagem é da primeira-ministra palestrando de cabelo preso em coque e uma blusa preta de gola rulê. E assim, eu sei bem pouco sobre Sanna Marin, mas se tem uma coisa que eu sei é que ela, em geral, usa cabelo solto e decote. Pausa aqui para te contar que eu escrevi um livro inteiro sobre Mulher + Roupa de Trabalho e tenho uma vasta pesquisa sobre como se vestem as mulheres na política.
A conclusão aqui foi muito óbvia: a Finlândia está vivendo um momento muito tenso com a Rússia atacando a Ucrânia. Resumidamente, Finlândia e Suécia consideram fazer parte da Otan e a Rússia já disse com todas as letras que "é óbvio que se a Finlândia e a Suécia entrarem na Otan, que é principalmente uma organização militar, teria sérias consequências militares e políticas que forçariam a Federação Russa a tomar medidas de retaliação", disse em 25 de fevereiro, um dia depois da invasão, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova.".
Não precisa ser especialista em moda pra entender que Sanna Marin está passando por um momento de tensão. Conscientemente ou não, ela fez um coque e fechou o decote. Vale dizer que ela já era uma fã da cor preta, sempre usou bastante, mas mesmo assim, a gola preta rulê tem uma longa história pra contar.
E aí, contando pra você em 140 caracteres, esse é o modelo de blusa que Steve Jobs usou, usou e usou a exaustão. Ele marcou essa peça como sendo o símbolo da inovação digital, mas também como sendo um item perfeito, adequado, minimalista, que tira a atenção da roupa e foca na pessoa que a usa. Uma roupa que transmite credibilidade. Steve Jobs não criou só a Apple, ele criou todo um novo código do vestir até pra quem sequer pensa sobre isso.
A vantagem da imagem é essa: ela passa mil vezes na nossa frente e a gente, sem nem se dar conta, absorve a informação. E, a partir daí, a blusa virou o uniforme de pessoas que queriam passar credibilidade e desapego fashion. Quase uma peça que diz "sou moderna, estou mudando o mundo e não tenho tempo a perder com roupa".
Apesar de Elizabeth Holmes, criadora da Theranos e condenada por fraude justamente nessa mesma indústria de inovação digital, ter dado uma bagunçada nessa boa imagem da gola rulê preta, não se engane, ela ainda segue muito forte no nosso imaginário coletivo.
Essa blusa passou a ser um uniforme em tribunais e também no vale do silício, virou um ícone, um símbolo, uma marca de estilo que dispensava esse contexto todo. Ela simplesmente funciona sozinha como uma peça que transmite credibilidade e sensatez.
Tudo isso para dizer que achei muito curioso e impressionante a mensagem que Sanna Marin resolveu passar por meio da roupa, senti que é como se ela dissesse: to concentrada aqui, mangas arregaçadas trabalhando, mas sou jovem e inovadora. Isso porque, pensa só, o comum, o esperado, o convencional, seria essa mulher vestir uma calça, um blazer e uma camisa. Não uma gola rulê.
De maneira geral, em situações de liderança e tensão, as mulheres, intuitivamente, recorrem aos símbolos masculinos de poder: camisa e blazer. A primeira-ministra da Finlândia, não.
Ela escolheu passar por esse momento de intensa apreensão com uma peça minimalista e neutra, que ao esconder o colo, fechar o decote, faz também com que a gente não se lembre tanto do seu gênero.
E não dá mesmo para julgar, em um mundo masculino de guerra: ser mulher é definitivamente um prejuízo.
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