Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Só preto? O que a minha roupa conta sobre mim mesma
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A pergunta que mais me fazem, não importa o contexto, é por que eu só uso roupa preta. E, veja você, eu nem uso mais só roupa preta mas, ainda assim, é isso o que mais questionam. Com tanta oportunidade pra criar uma lenda, já contei muitas histórias e muitas versões. No início eu dizia que tinha feito essa escolha porque gostava da cor, me via nas fotos vestida de preto e me sentia gata, sei lá, não tinha nada muito além disso.
Com o tempo eu fui entendendo que decidi usar preto porque quando comecei a trabalhar com moda eu me sentia completamente fora da galera. Completamente de outro mundo, intrusa... E, bom, vamos combinar, o mercado de moda tá longe de ser o mais receptivo, né? Preto me dava a sensação gostosa de estar nos bastidores —que é o que eu tava acostumada a fazer em cinema.
Depois entendi que vestir all black era um jeito bom de passar despercebida em algumas situações —tipo quando eu ia fazer compras com uma cliente e a vendedora só falava comigo porque minhas roupas eram muito diferentonas e coloridas. E a cliente se sentia coadjuvante quando, na real, ela era a protagonista daquele dia. Quando era tudo preto, raramente alguém comentava.
Preto tem essa coisa misteriosa e indiferente, ao mesmo tempo. Pode reparar, se você for perguntar as horas para alguém no metrô, dificilmente vai ser pra alguém que tá com roupa preta dos pés à cabeça. E eu gostava disso. Eu não sou uma pessoa tímida, mas sou meio bicho do mato, meio na minha, eu não sei conversar na fila do supermercado e nunca na vida puxei assunto com alguém que não conheço. O preto ajuda.
Além de todos esses motivos, tem mais dois que eu só percebi recentemente: primeiro de tudo, nunca me identifiquei muito, mesmo, com as consultoras de moda que já existiam quando me formei. Eu vinha de um contexto completamente diferente e, de alguma maneira, para mim era importante sublinhar essa diferença. O meu trabalho era, quando comecei, feito por mulheres mais ricas, que atendiam clientes ricas, que compravam roupa em lojas caras e usavam um monte de cor colorida ao mesmo tempo. Eu nunca fui desse universo.
Nunca tive problema de grana, para ser bem honesta, mas compras na Oscar Freire nunca foi meu nicho —ainda que hoje em dia eu tenha muitas clientes ricas, ainda é muito raro que fique dando rolê com elas nos Jardins. Eu sempre gostei mais de moda alternativa, de contracultura... Eu não tinha interesse em parecer chique ou sofisticada. Me lembro de que, quando me formei consultora de moda pela primeira vez, uma professora me disse que jamais daria certo usar tanta roupa preta: "Preto afasta as pessoas", ela me disse. Acho até que um pouco de mim resolveu que preto era a minha cor só para provar que isso era uma bobagem (e é!).
Por fim, usar só roupa preta foi um imenso exercício de estilo: se cor é a primeira coisa que o nosso olho enxerga, como é que eu construo imagens de moda diferentes entre si, todo dia, só usando a cor preta? Aprendi muito sobre texturas, tecidos, caimentos, sobreposições. Eu realmente acredito que a criatividade brilha na falta. Na falta de cor eu inventei mil jeitos, dentro do que eu gosto e acho bonito, de usar uma cor só.
Até que passou
Assim, sem aviso prévio, eu fui tendo vontade de usar outras cores. Um tênis colorido, uma blusa branca, um moletom de onça. E, sem drama, resolvi testar outros jeitos de fazer e de usar.
Olhando para todos os motivos que citei aí em cima, acho que o tempo passou e a maioria deles não faz, mesmo, mais tanto sentido. Hoje em dia, já trabalho com moda há muito mais tempo do que trabalhei com cinema, já é um fato. Já atendi do Emicida a Tati Bernardi, passando por clientes super sem dinheiro —que eu decidi atender de graça; e por clientes riquíssimas —-que me apresentaram todas essas lojas de luxo, onde eu nunca tinha entrado.
Já atendi muita mulher comum: que tava separando, casando, mudando de cidade, de carreira, sendo promovida, decidindo sair do mercado formal para cuidar dos filhos. Já escrevi livro, já tive duas empresas. Eu já vivo de moda há quase dez anos.
Hoje não ligo mais de passar despercebida ou não em loja porque aprendi a guiar o atendimento pra que ele seja só e somente, absolutamente, sobre a minha cliente. Também não tô nem aí mais pra como as outras consultoras de moda se vestem: eu já sei quem eu sou, o outro não me importa. E, bom, vale admitir que ao longo desses quase dez anos eu virei uma pessoa muito tatuada, não importa a cor da roupa mais, não há maneira de soar careta com tanta tinta preta espalhada pelo corpo.
A verdade é que eu gosto mais de modelagem que de cor.
Eu não sou e acho que nunca serei uma pessoa maximalista. Eu gosto de uma limpeza visual —e isso é muito mais fácil de atingir no monocromático. Mas, tendo essa informação tão bem resolvida, eu agora me sinto segura para navegar por outros universos, testar outras coisas.
E posso dizer sem medo que adoro o meu trabalho justamente porque vejo todo dia que dá pra dizer muita coisa por meio das roupas e sou muito seduzida por tanta possibilidade. E, justamente por isso, sinto que esgotei a língua do all black e a minha criatividade andou pedindo mais liberdade, recentemente.
Sobre o exercício de estilo, foi ótimo, importante, aprendi muito e já tô pronta pro próximo desafio —que eu vou deixar em aberto pra gente dobrar a meta quando atingir a meta, já diria minha presidenta.
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