Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mudar de nome não vai apagar o pai que me abandonou
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Foi dia desses que eu contei pro Miguel, pela primeira vez, que o meu pai de verdade não era também o meu pai biológico. Foi uma semana confusa na escola. Tinham pedido um trabalho sobre a árvore genealógica e, enquanto metade da turma dele tinha até foto dos avós chegando da Itália de navio há 100 anos, a outra metade sequer sabia quem eram seus antepassados.
Miguel estuda em uma escola com alguma diversidade e eu, prontamente, fui lá dizer que, sim, era bastante insensível propor essa atividade para crianças tão pequenas. A hora de dizer que ela não tem foto pequenininha porque foi adotada não é simples e cada família precisa decidir sem pressão escolar quando pisar nesse território. Passou a treta e só depois eu me dei conta de que eu tinha também uma história para contar pro meu filho mais velho.
Eu sou filha adotiva do meu pai. Ainda bebê, eu fui abandonada pelo meu pai biológico —que nunca vi, nunca conheci e só sei pela minha mãe e pela violência do abandono o quanto ele era um homem desprezível. Era. Do verbo morreu e digo com alívio porque eu jamais escreveria esse texto aqui se houvesse qualquer chance desse fantasma reaparecer. Fui avisada por algum comunicado extrajudicial que o homem tinha morrido e eu precisava garantir que não era mais filha dele. Fui adotada formalmente pelo segundo marido da minha mãe e eu me sinto tão filha do meu pai que, com muita frequência, esqueço esse lado tão brasileiro, infelizmente, da minha biografia.
Tomando banho dia desses, Miguel veio me chamar para pedir qualquer coisa quando eu disse: "Filho, senta aí que eu preciso te falar uma coisa". Eu tenho muitas qualidades, mas timing não é uma delas. Miguel me olhou achando que tinha feito algo de errado e, enquanto eu tirava o xampu do cabelo e espirrava água no banheiro inteiro com a porta do box aberta, eu contei de uma vez só: "O vovô não é o meu pai biológico, meu pai biológico me abandonou quando era bebê, minha mãe se casou com o meu pai de verdade eu já tinha 7 anos". E ele me olhou com um alívio enorme e disse: o que é biológico? Expliquei. Ele respondeu: "Ah entendi, tipo a Marina não é filha da barriga da minha tia?". Tipo, mas expliquei melhor porque eu era filha da barriga da minha mãe —que pra piorar a novela mexicana, já morreu e Miguel nunca conheceu. Ele se abalou zero, não deu a menor confiança, o vovô dele segue sendo o vovô Narley. Se bobear ele já esqueceu e eu vou ter que retomar esse assunto daqui uns anos.
Mas eu to com isso na cabeça (e por isso virou tema da coluna) porque essa semana eu vou mudar de nome. Sim, não bastasse um pai ausente, ele deixou de presente o seu primeiro nome. Eu me chamo Carla Thais. Eu deveria me chamar só Thais, que era como minha mãe queria que eu tivesse sido registrada e como sou chamada desde sempre e pra sempre. Carlos era o nome do meu espermatozoide.
Há anos eu quero tirar esse Carla do nome, Carla é uma marca que eu tenho que carregar 24 horas por dia, 7 dias por semana. Sou lembrada todo dia e o dia inteiro desse pesadelo. Passei 38 anos tendo que explicar porque me chamo Carla Thais, mas só respondo por Thais. E agora, finalmente, eu posso mudar de nome. Alguma lei aí mudou e eu to vivendo esse processo. Engraçado que quando contei pros amigos as reações foram "mas tem que ir na numeróloga primeiro, vai que tirar o Carla não funciona?" ou ainda "putz, mas o seu diploma não vai ter o seu novo nome". Gente, segura na minha mão: eu ca-guei pro diploma, quem em 2022 é formada em cinema, trabalha com moda e usa diploma? E eu não acredito em numerologia, mas acredito que não tem nada de bom em carregar essa história no nome.
Mas eu também sei que nada muda. Ando pensando muito como eu vou deixar de ser Carla Thais, oficialmente, bagunçarei toda a minha vida burocrática, andarei com mil documentos provando que eu sou eu mesma, mãe dos meus filhos, e de como eu esperei por isso, como desejei tirar de mim esse último traço de uma história que é minha, mas que eu não escolhi que fosse. É só um símbolo, a verdade é que mudar de nome não muda nada dentro de mim. Os 7 primeiros anos de vida explicando na escola e pros amigos porque eu não tinha pai. E os 31 seguintes aprendendo a ter um pai. Não muda. Não devolve os muitos reais investidos em terapia e também não cura o rancor que eu carrego desse homem —que foi horroroso comigo e infinitamente pior com a minha mãe.
Mas mudar de nome é um símbolo pra mim mesma: eu não sou só isso e, da parte que me cabe nesse latifúndio, eu cuido. Eu não quero esse nome, mas essa história é minha e eu carrego sem mais tanto peso. O que posso mudar eu mudo, o que eu tiver que fazer pra ser feliz, eu faço. O que eu não escolhi e não controlo, eu aceito. E eu tô animada, sim!
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