Boa noite, Cinderela!

A reportagem distribuiu drinques "batizados" na noite para descobrir por que aceitam bebidas de estranhos

Felippe Canale Colaboração para Universa
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O experimento

Quando ouvimos histórias sobre pessoas que foram dopadas com drinques batizados, dois sentimentos podem nos passar pela cabeça. 1. Que perigo! 2. Por que alguém aceitaria uma bebida de um estranho? Talvez culpar a vítima seja um reflexo automático, algo que fazemos quase sem perceber, mas que precisamos questionar. 

Pensando nisso, resolvi fazer falsos drinques batizados e tentei oferecer para pessoas durante uma madrugada em Melbourne, na Austrália, onde moro. Eram baladas similares às festas que acontecem em São Paulo ou em qualquer grande metrópole do mundo. A surpresa é a reação das pessoas ao serem abordadas por um desconhecido que oferece bebida alcoólica do nada: a maioria das pessoas não pensa duas vezes antes de aceitar.

E você? Aceitaria ou recusaria? Veja o que aconteceu no meu “experimento”.

Um nome de princesa para um crime

O golpe "Boa Noite, Cinderela" é quando alguém coloca algum tipo de droga, sejam ilegais ou as que podemos comprar com prescrição médica nas farmácias, na bebida de uma vítima. A intenção dessa atitude é baixar ou anular as suas defesas – geralmente, a pessoa que tomou apaga e não se lembra do que aconteceu nos momentos antes de dormir. Isso pode facilitar um furto, um roubo, assédio moral ou agressão sexual.

O que faz a Cinderela dormir?

A consulta médica durou menos de 10 minutos e saí de lá com uma receita perigosa

Depois de alguns minutos na internet, eu descobri que benzodiazepínicos, também conhecidos como tranquilizantes ou sedativos tarja preta, são usados com frequência nesse tipo de golpe. Félix Nasser, professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, afirma que algumas drogas podem ser prescritas por psiquiatras e também por médicos de outras especialidades. "Os primeiros costumam ser um pouco mais cuidadosos, pois lidam mais com os efeitos colaterais e tratam pacientes com dependência dessas substâncias. Em vários países do mundo, essa classe de medicamento é utilizada para tratamentos ansiolíticos, hipnóticos, anticonvulsivantes e relaxantes musculares.”

Teoricamente, tarjas pretas como esses só são vendidos com receita médica, se o paciente apresentar sintomas como estresse, ansiedade e insônia prolongada. Então, eu fui a um médico e disse que estava estressado, ansioso e tinha dificuldades para dormir há mais de uma semana. Não demorou 10 minutos: saí de lá com a receita e a caixa com 25 pílulas de sedativos me custou 12 dólares (no Brasil custa R$ 14,10 mas o genérico sai por R$ 7 em qualquer site de compra online).

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A receita dizia para tomar uma pílula toda noite minutos antes de dormir durante cinco dias, mas o farmacêutico me recomendou ingerir apenas meia pílula na primeira noite para que eu pudesse “sentir os efeitos, pois cada pessoa pode reagir de uma maneira diferente”. Félix afirma que a melhor forma de combater o uso indiscriminado dessa medicação é combater as vendas ilegais sem receita médica e tornar o controle da prescrição mais rigoroso.  “Na minha experiência, a prescrição sem necessidade ocorre principalmente quando é feita por profissionais que não são especialistas em saúde mental. Para que esses remédios sejam prescritos de maneira segura, o paciente deve ser avaliado de forma criteriosa, levando em consideração o seu desenvolvimento, histórico psiquiátrico, sintomas atuais, uso de outras medicações, entre outros”, ele diz.

E isso, claramente não aconteceu comigo.

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Um dia de Cinderelo

Quando cheguei em casa, decidi tomar e analisar os possíveis efeitos em uma vítima que não ingeriu álcool. Foi uma loucura, eu sei.

Em menos de 30 minutos, eu comecei a perder o controle da minha coordenação motora e minha energia foi ficando baixa: quase uma Alice no País das Maravilhas caindo dentro do buraco em busca do coelho branco.

Pensei que para a vítima deve ser pior ainda, porque ela começa a sentir tudo isso sem entender o motivo dessas reações nem ter ideia de que foi dopada. Segundo o meu namorado, ele precisou me levar para a cama, pois eu estava “muito chapado e falando enrolado”. Ele me deixou dormir por 12 horas seguidas e depois desse tempo resolveu me acordar porque já estava bem preocupado.

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Foi a primeira vez que eu tomei um medicamento desse tipo. Foi bem assustador pensar nas consequências para quem é dopado sem ter a menor ideia do que está acontecendo.

Fiquei tão impressionado com os efeitos em mim que, quando acordei, resolvi jogar os comprimidos restantes na privada, para evitar que outra pessoa em casa corresse esse risco. As pílulas rapidamente se dissolveram quando entraram em contato com a água... imagina no seu drinque?

Por isso, não basta olhar para o copo do que você aceitar no bar: tem é que ficar grudada no seu drinque mesmo, ou dificilmente você verá algo suspeito lá dentro.

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Montei um kit falso para "dopar" pessoas

No meu "Boa Noite, Cinderela" do “bem” tinha uma garrafa de pinga e 25 unidades de balinhas flutuando dentro dela -- uma tentativa de simular a mesma quantidade de comprimidos de sedativos que eu havia comprado.

Aprendi no Brasil que não é tão difícil fazer novas amizades quando você chega numa festa com uma garrafa de bebida nas mãos. E as pessoas ficam ainda mais empolgadas quando você deixa claro que a bebida é extremamente alcoólica, "uma iguaria brasileira".  

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As pessoas querem fazer amizade

Como será que algumas pessoas reagem quando um desconhecido oferece um drinque duvidoso para elas? Foi isso o que eu fui descobrir numa festa em uma casa em que os amigos dos amigos eram bem-vindos, “pode trazer quem você quiser, desde que todos tragam alguma bebida ou o que forem consumir”.

As minhas primeiras vítimas foram o casal Ana e Thomas, nomes fictícios a pedido de ambos, que estavam sentados se beijando num canto de uma das salas quando eu os abordei. Eles acharam a pronúncia da palavra “cachaça” engraçada e adoraram o gosto forte da bebida. Depois expliquei que se tratava de uma matéria sobre "drink spiking", ele riram e toparam bater um papo.

“Eu aceitei porque pensei que você pudesse ser um amigo de algum amigo meu, sei lá... não conheço nem metade das pessoas que estão aqui nesta festa. E você não tem cara de ser um psicopata. Além disso, o meu namorado aceitou primeiro, então, me senti segura para beber também”, disse a Ana.

 Já Thomas disse que aceitou a bebida porque eu parecia ser gay e, sendo assim, não aparentava ser um risco para ele. “Talvez, se você fosse hétero, eu não tivesse aceitado”, disse.

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Todo mundo aceita bebida de estranhos e fica feliz!

“Mas e se você visse um filme ruim no qual um psicopata gay oferece uma bebida batizada para um casal na intenção de estuprar o cara e roubar a namorada dele, o que vocês achariam?”, perguntei para meus novos amigos.

“Eu acharia que o casal é idiota por ter aceitado uma bebida de um desconhecido. Se isso tivesse acontecido de verdade com a gente, eu jamais admitiria para os meus amigos ou minha família. Sei lá, me sentiria meio idiota”, disse Thomas. Ana concordou e disse que nunca mais aceitará um drinque de um desconhecido. Aprendeu a lição.

Minutos depois, eu abordei um cara fumando maconha perto do DJ da festa e lhe ofereci uns goles. Isso foi suficiente para criarmos um clima de extrema comunhão e irmandade. Em poucos minutos, formou-se uma roda ao nosso redor composta por desconhecidos que também compartilharam da pinga. Ninguém perguntou do que se tratava aquelas balas flutuantes dentro da garrafa.

Ensinamento: uma pessoa que você conheceu, dançou e se divertiu numa noite pode ser considerada uma desconhecida? Sim. E perigosa.

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Batizar um drinque na cara do segurança? Fácil!

Depois que a garrafa secou, eu decidi migrar para um pub em outro canto da cidade com o que havia sobrado do meu Kit Boa Noite Cinderela, que agora era composto apenas pelas balas remanescentes.

Chegando lá, comprei um drinque no bar e o deixei em cima do balcão antes de me dirigir ao banheiro. O plano era que o meu namorado se aproximasse para colocar algumas balas dentro do copo e ver se alguém em volta tomaria alguma atitude.

Talvez ele tenha sido um bom ator, mas parece que ninguém reparou quando ele fez isso no meu copo e foi embora. Quando eu voltei, encontrei o meu drinque com um gosto mentolado de pasta de dente e nem mesmo o segurança do local pareceu notar.

Aparentemente, em casas noturnas, você pode estar sendo filmado, mas nem tanto...

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O amigo de amigo é "vítima" certa

Depois disso, tentei oferecer uns goles para duas mulheres que pareciam estar sozinhas em situações diferentes, mas nenhuma delas quis. Foi aí que eu encontrei a Lara, uma conhecida do meu namorado que havia estudado com ele no ano passado.

Eu me apresentei, disse que era namorado dele e ofereci o copo com balas boiando. Ela imediatamente disse sim. Após duas músicas, o seu copo já estava praticamente vazio e eu lhe mostrei as balas no fundo. “Topa me dar uma entrevista sobre 'Boa Noite, Cinderela'?”, eu perguntei.

“Que susto você me deu agora! Eu ri, mas foi de desespero, sabia? Você nunca vai conseguir imaginar o quanto é horrível ser mulher, pois em qualquer lugar do mundo vai ter algum imbecil tentando cometer algum tipo de abuso contra a gente. Eu nasci na Espanha, já morei em alguns outros países e mesmo morando aqui em Melbourne, que é uma cidade segura, eu tento ficar sempre atenta com essas coisas. Eu até pensei em perguntar o que eram essas coisas brancas flutuando dentro do copo, mas não quis parecer chata, já que eu conheço o seu namorado. E você me pareceu gentil oferecendo o drinque, sei lá, eu já tinha bebido um pouco e estava só tentando me divertir como qualquer outra pessoa aqui dentro. Mas olha, nós mulheres não temos que mudar o nosso comportamento, não. Por que eu não posso aceitar um drinque de um estranho ou de alguém que acabei de conhecer? Eu queria um mundo com menos pílulas e com menos homens escrotos, porque está complicado confiar nas pessoas, viu?”, ela desabafou.

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Desconhecidos aceitam e ainda ficam muito felizes

Mas a minha noite ainda não tinha terminado por ali e decidi ir para outra casa noturna. O meu plano agora seria oferecer um drinque repleto de balas para um desconhecido.

“Ei, posso te oferecer uma bebida?”, perguntei para um cara que estava dançando sozinho e parecia estar curtindo muito. Nos apresentamos, o Sam aceitou com um grande sorriso estampado no rosto (mesmo já estando segurando um outro copo) e passamos mais de vinte minutos filosofando sobre o quanto é bom conhecer novas pessoas na noite e curtir a vida. A gente até fez um brinde para celebrarmos aquele momento e ele perguntou se eu jogava futebol, aquele papo de “Brazil, Neymar, Ronaldinho e até o Pelé”. Respondi que preferia dançar samba e contei que estava escrevendo sobre "Boa Noite, Cinderela".

Sam ficou um pouco desapontado. “Porra, eu nunca imaginei que eu cairia num golpe como este, geralmente sou um cara atento. Eu confiei porque você me pareceu ser bacana e o fato de ganhar bebidas é sempre uma alegria", ele falou.

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A minha próxima vítima foi o Glen, um simpático desconhecido que me abordou na escada quando eu já estava quase indo embora. Não sei se fui eu quem ofereci um resto de drinque com gelo derretido ou se foi ele quem tomou da minha mão e bebeu por conta própria. Quando eu o avisei que o copo estava com balas ele deu risada e perguntou que tipo de balas. Quando expliquei que se tratava de uma matéria... “Eu vou continuar aceitando coquetéis de estranhos, a vida é para ser vivida, até parece que vou deixar de me divertir ficando com medo de um 'Boa Noite, Cinderela'. O meu organismo é forte, estou bebendo a noite inteira e se fosse para eu ter desmaiado eu já estaria caído nesse chão”. Então, tá, né...

Mas a gente sabe que todo mundo já conheceu um Glen em alguma festa. Ou quem sabe, foi o próprio Glen...

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