Cinema de pegação

Entramos em um cinemão de São Paulo: decadência da arte ou espaço de sexo livre entre homens?

BRENO DAMASCENA COLABORAÇÃO PARA UNIVERSA
Carine Wallauer/UOL

Alvo de olhares curiosos e de reprovação, os cinemas pornô do centro de São Paulo são resultado da decadência das salas de rua nos anos 1980, com o sucesso das salas em shoppings. Funcionando 24 horas por dia, são frequentadas, basicamente, por homens em busca de sexo, mas, também, por trabalhadores da região que querem um chão para dormir no meio da jornada de trabalho. Palcos levam shows de gogo boys nos finais de semana e telões apresentam filmes o tempo todo (cujo enredo pouco importa). Aqui, você lê o relato de uma visita a um dos mais conhecidos cinemas pornôs da cidade, o Cine República, localizado na famosa praça de mesmo nome, na capital paulista.

Bilheteira, a única mulher

O tradicional cinema pornô da Praça da República, em São Paulo, não passa despercebido pelas milhares de pessoas que caminham diariamente por lá. São frequentes os olhares de curiosidade e, também, de reprovação dos pedestres. Na porta, alguns moradores de rua ficam sentados em seus cobertores pedindo dinheiro aos transeuntes. A pintura externa do prédio, totalmente preta, chama ainda mais atenção naquele sábado de sol, às 15h45, quando resolvi entrar. O letreiro vermelho anuncia, convidativamente, que o local é 24 horas.

Depois da porta de entrada, uma catraca --como as dos ônibus-- e uma cabine de vidro me recebem. Há um papel A4 colado indicando o valor do "show" naquele dia: R$ 19 reais. De dentro da cabine, uma mulher, cujo rosto não se pode ver, recebe o dinheiro. Aquela foi a única mulher que vi durante todo o período que passei dentro do cinema.

Uma vez lá dentro, não há limite de horário para a saída. Por conda disso, não é raro que trabalhadores da região aproveitem a pouca luz e privacidade do lugar para dormir entre as cadeiras. 

Vários pôsteres de filmes pornô decoram o ambiente. As imagens estão com borrões escondendo o sexo dos atores e atrizes. Também estão expostos cartazes informativos do Governo Federal, frisando a importância do uso da camisinha. Girada a catraca, o cliente é, então, recebido pelo segurança, que indica os vários ambientes disponíveis.

Carine Wallauer/UOL

O que tem lá dentro

Uma cortina encobre a entrada para o auditório. Aqui, o público da sala está espaçado, não mais do que uma pessoa por fileira. E a escuridão torna quase impossível ver rostos. O local é menor do que um cinema tradicional, mas nem por isso deixa de ter um tamanho considerável. Na frente da tela, um pequeno palco está preparado, esperando o show que, provavelmente, aconteceria mais tarde.

No fundo, um grupo de homens está apoiado na parede, em silêncio. Um deles se alisa por cima da calça jeans. A projeção digital exibia uma cena --que já estava no meio quando cheguei-- de um homem transando com duas mulheres ao mesmo tempo.

O som estava baixo, por isso dava para ouvir o barulho de zíperes se abrindo e dos movimentos das mãos dentro das calças. Depois de alguns minutos, quando a cena chegava ao clímax, dava para ouvir com mais clareza a respiração ofegante do público.

Durante todo esse período, um homem caminha, indo e vindo lentamente, pelo corredor que separava os dois conjuntos de cadeiras, enquanto observa com calma os frequentadores. Por um momento, imaginei que se tratasse do lanterninha. No entanto, ele parou em pé ao lado de um homem que, sentado, se masturbava. Depois de observá-lo por um tempo, ele continuou seu trajeto para o final da sala.

Fim da primeira cena. Um novo filme, falado em inglês e sem legendas, está começando. O enredo, agora, acompanha um homem com traços europeus, dono de uma oficina mecânica. Ele recebe duas mulheres clientes loiras que entraram em seu estabelecimento. Aparentemente, as duas são namoradas. Depois de uma curta conversa, os três começam a transar em cima do carro.

Após alguns minutos de filme, o homem que perambulava no corredor volta e se acomoda na cadeira exatamente atrás do sujeito que ele observou anteriormente. Alheio a toda essa movimentação, na primeira fileira, um homem se levanta com a bermuda e a cueca abaixo do joelho. Com tranquilidade, puxa a vestimenta, fecha o cinto e caminha em direção à saída.

Alguns segundos depois, o rapaz que estava na cadeira do lado faz exatamente o mesmo caminho. O filme continua e a cena mostra as duas mulheres se beijando enquanto o homem penetra uma delas.

Carine Wallauer/UOL
Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

A indústria do sexo

Anualmente, a indústria pornográfica movimenta US$ 97 bilhões em todo o mundo, de acordo com o site The Week. Aproximadamente 750 milhões de pesquisas diárias em ferramentas de busca --como o Google-- envolvem sexo, o que dá 25% do total de consultas.

Existem 76,2 milhões de sites pornôs no mundo, aproximadamente 12% do total de sites existentes. Todos os dias surgem 226 novos domínios sobre o tema e 35% dos downloads realizados envolvem pornografia, segundo levantamento da Revista VIP.

Só neste momento, 30 mil pessoas estão assistindo a vídeos pornográficos e, para atender a essa demanda constante, um novo conteúdo é produzido a cada 39 minutos. 

No entanto, não é só dos filmes que os cinemas do gênero sobrevivem. Ryan, que prefere não revelar o nome verdadeiro, é frequentador desses locais. Ele abre o jogo em tom bem humorado: “Curto filmes de travestis e filmes héteros, mas o que menos se faz lá dentro é assistir”.

Cinemas foram uma rede social

Em 2008, Alexandre Rosa, escritor e mestre em Literatura Brasileira pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, realizou uma pesquisa sobre os cinemas pornôs do centro da cidade de São Paulo e os hábitos dos frequentadores. O estudo, realizado ao lado de Anderson Vallerini, Cleber Fabio e Danilo França, observou que há uma socialização dos frequentadores.

Os Cinemões --como são chamados popularmente-- representam, além de liberdade sexual, a decadência dos cinemas de rua tradicionais. Nos anos 1980, com a chegada dos shoppings centers e grande complexos, o público passou a frequentar outro espaço. Isso, somado à chegada dos videocassetes, da expansão do consumo de TVs e da enorme quantidade de locadoras de vídeo que existiam nos bairros, decretou a falência dos tradicionais cinemas de rua e ascensão dos cinemões.

Alexandre aponta que essa foi uma tentativa desesperada dos donos de cinema para não perderem dinheiro. “Começaram a surgir tentativas por parte dos donos destes cinemas. Primeiro, com filmes de grande sucesso nas bilheterias americanas –normalmente filmes de faroeste ou de lutas, filmes do Charles Bronson etc. Os filmes eróticos e pornográficos foram (e continuam sendo) o último expediente dos donos dos cinemas para continuar existindo”, afirma.

Circuito de sexo

Com a saída dos filmes tradicionais, uma nova cultura cresceu e ocupou esse espaço. Hoje, os cinemas pornô são parte do circuito sexual da cidade e costumam representar e trazer liberdade para um público que, até então, era marginalizado.

“No meu entendimento, os cines pornô fazem parte de um circuito maior de consumo de bens de lazer, que podemos denominar de ‘circuito do sexo’ ou ‘da sexualidade’, que envolve casas de shows, puteiros, casas de swing, feiras eróticas, sex shops etc. Tem uma frequência muito grande do público homossexual masculino, mas não só dele. Os cines também são responsáveis por manter viva uma parte memória da cidade, já que muitos vêm lá da década de 1940, 1950”, diz Rosa.

A língua dos frequentadores

A pesquisa “Cinemas pornôs da cidade de São Paulo” aborda os significados implícitos que podem ser notados em certos códigos dentro desses cinemas. Cruzar as pernas significa que você está disposto a estabelecer uma relação. Sentar na cadeira ao lado da que está margeando o corredor mostra disposição para aceitar companhias. Circular entre as fileiras de cadeiras significa que você está escolhendo um candidato para transar.

"Passar pelo corredor e raspar a mão em um rapaz pode ser um convite para ir ao banheiro, sentar juntos nas poltronas ou ir para o dark room”, diz Rosa. 

Carine Wallauer/UOL

O Corredor

A escada que conecta a primeira sala de cinema com a segunda é limpa. O ambiente, apesar de um pouco abafado, não traz incômodo. A nova sala é um pouco mais ampla e o som do filme bem mais alto. O auditório está ocupado por mais pessoas e é possível ver várias pessoas sentadas aos pares nas poltronas. O público continua composto apenas por homens. Assim como no primeiro ambiente, vários ficam enfileirados na parede do fundo da sala. Na tela, o filme mostra dois homens transando.

O ar tem um forte cheiro de detergente e a luz é escassa. No canto da parede, perto da escada que levaria ao próximo andar, um homem, vestido com o uniforme de trabalho, está dormindo no chão, com a cabeça apoiada na mochila, alheio ao que está acontecendo a sua volta. Só quer descansar.

A escada para o terceiro ambiente era bem diferente da anterior. O chão está grudando. Camisinhas usadas e papéis sujos estão espalhados nos degraus. 

No cume da escada, um corredor apresenta várias entradas, todas sem porta. O chão continua pegando nos sapatos e o cheiro piora. No final do corredor, um casal de jovens está conversando com os rostos colados. A primeira porta leva ao banheiro, onde dois casais transam em pé. A segunda porta indica uma escada que levaria ao "dark room", uma sala totalmente escura e isolada, onde as pessoas vão para fazer sexo. A terceira leva ao bar, aparentemente vazio.

Os homens circulam olhando para o chão, quando algum desconhecido passa perto.

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Cliente experiente

Ryan, cliente do cinema, explica os ambientes: “O bar é basicamente para você relaxar um pouco, mandar alguma energia para dentro e continuar no cine. Já o dark room é a sala escura, em que você pode comer alguém ou ser comido sem ver a pessoa”.

Ryan frequenta o cinema desde o final dos anos 1990, mas diz que, hoje em dia, vai apenas uma ou duas vezes por mês. Ele comenta que a liberdade de saber que está em um lugar totalmente anônimo e não ter que dar satisfação a qualquer pessoa é o que o motiva a visitar.

"Aquele ambiente paralelo parecia um pedaço do inferno e eu adorava aquilo. Depois, da porta para fora do cinema, a vida seguia normalmente, como se nada daquilo existisse”.

Ele diz que há um o declínio desses cinemas: “Infelizmente, investem pouco na segurança, então eu prefiro usar o bar. O dark room eu não recomendo”. Ryan também reclama da falta de higiene e cuidado com a infraestrutura. “Tem cines onde os bancos não existem, apenas o apoio de ferro onde um dia houve um banco”.

Preconceito com o cinemão

Ryan conta que já ouviu comentários que considera "nada agradáveis" de quem nunca entrou em um cine pornô, mas conta que nunca sofreu preconceito. Ou quase nunca...

“Numa tarde, eu realmente não estava a fim de fazer nada, só bater uma e ficar ali, até passar o horário de pico das conduções. De repente, escutei uma voz estranha, alguém gritava e parecia estar jogando água nas pessoas ao redor. Quando percebi, vi que um pastor gritava palavras de condenação com uma bíblia na mão. Falava daquele jeito típico que os pastores falam. Foi cômico", conta.

"Eu gosto do anonimato, gosto da putaria e da possibilidade de fazer coisas que não faria fora dali”. E faz um alerta: “Acho importante que as pessoas saibam que ali é um local que tem todo tipo de gente, não sabe quem é mocinho nem quem é errado na vida. Nunca faça sexo sem camisinha e leve suas próprias camisinhas antes de se aventurar com pessoas estranhas”.

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