Lute como uma garota

Medo de assédio e estupro faz mulheres buscarem cursos de defesa pessoal. Repórter fez aula e conta tudo

Thais Carvalho Diniz Da Universa
Carine Wallauer/UOL

Quando mudei para São Paulo para fazer faculdade, aos 17 anos, minha mãe me acompanhou no primeiro dia de aula. Nasci e fui criada em Resende, no interior do Rio, nunca havia pegado nem o Metrô. No calor fluminense, saía de shortinho o tempo todo e, segundo a dona Mara, eu deveria usar roupas "mais fechadas" dali em diante. "Nada de decotes e minissaias. É perigoso para uma mulher expor o corpo!" 

Já me achava muito malandra na cidade grande, quando escolhi um vestidinho para ir à faculdade. Dentro da estação de Metrô, no final da escada rolante, uma senhora me avisou: "Um moço atrás de você estava filmando embaixo do seu vestido com o celular". Na mesma hora, corri até um funcionário na esperança de que me ajudasse. "Nossas câmeras estão quebradas. Não podemos fazer nada." 

Nunca esquecerei a sensação. Foi como se meu corpo tivesse sido violado. Oito anos se passaram e, ao escrever sobre isso, rangi os dentes com a mesma raiva daquele dia

Ouvi histórias mais estarrecedoras que a minha em um curso de defesa pessoal feminina, que fiz recentemente. Minhas colegas eram mulheres cansadas de apertar o passo em ruas escuras. De ter medo de entrar em um táxi sozinha ao sair da balada. Indignadas de ouvir por aí que, usando roupas "mais fechadas", correm menos risco de estupro.

Homem nenhum sabe o que é isso.

Lutaríamos com os homens no tatame

Marcelo Gomes, 44, é professor de artes marciais e tem uma escola em Osasco, na Grande São Paulo. O número de alunas no curso de Bushido Ryu, modalidade voltada para a autodefesa, aumentou nos últimos tempos, segundo ele.

Um dos motivos é que nesse estilo de combate - que mistura caratê, jiu-jítsu, kung fu, krav maga e boxe - as mulheres podem lutar em pé de igualdade com homens. "O Bushido Ryu fala em 'adaptação ao adversário'. Não é o mais forte que vence, mas aquele que se adapta às condições do adversário", explicou Marcelo.

Na aula me ensinariam a me defender de ataques com facas, se for agarrada por trás ou tentarem me imobilizar

Havia homens no tatame e eu me preocupei que o treino poderia perder o foco. Afinal, não estávamos todas ali para aprender a nos defender de ataques masculinos nas ruas? 

"Em 99,9% dos casos, o agressor é um homem. Vocês têm que se preparar para a realidade, por isso vão lutar com eles sim", adiantou o professor.

Cabelo encharcado de suor e a sensação de "não vou conseguir"

Para minha primeira aula usei legging, top e camiseta, como se fosse para um treino na academia. Já para a segunda, segui a recomendação da instrutora Marlene Lira, 52, e fui de calça e blusa regata. "A ideia é que nas simulações de ataques violentos que faremos aqui você aprenda a conta-atacar usando as roupas do dia-a-dia. Como um jeans, que limita os movimentos", explicou. 

Marcelo contou que a parte mais forte do corpo que a mulher pode usar em uma luta é o quadril. Então, todos os exercícios seriam para aumentar a potência das pernas, bumbum e braços.

Se você for jogada no chão, usar o braço contra o agressor é perda de tempo. Use a perna para tirar o homem de cima", afirmou Marcelo, me deixando angustiada só de pensar nessa situação 

Apesar de só ter feito balé e jazz na infância, frequento a academia regularmente. Estava confiante de que me sairia bem na aula, pelo menos no condicionamento físico. Que erro... Entre pular corda, fazer flexões e polichinelo, meu cabelo encharcou de suor em menos de 20 minutos.

Será que eu não aguentaria até o fim?

Fiz um cara bater no tatame de dor

No treino puxado também aprendi golpes como aqueles que a gente costuma ver nos filmes de ação. Tipo quando a protagonista tira o agressor de cima dela e faz uma alavanca até quebrar o braço. E também apanhei das outras mulheres que faziam o curso há mais tempo que eu.

A principal diferença entre os homens e as mulheres nas aulas, segundo o mestre Marcelo, é a preocupação com a técnica. "Vejo que 80% dos meus alunos homens acham que vão resolver tudo na força. Já as garotas priorizam a técnica e saem daqui sabendo como se defender de um roubo de celular ou se o agressor tentar violentá-las."

Eu, que me achava fraca, descobri o quanto a força não é a dona da parada

Um foco de ataque mais óbvio na defesa pessoal feminina é acertar o pênis. Um "chute no saco" do agressor é quase garantia que o cara vai se abaixar da dor e nos dará abertura para mandar aquela joelhada no nariz dele.

A cada três, quatro repetições de golpe, eu conseguia fazer alguns homens no treino baterem no tatame de dor. A sensação de poder vencê-los era boa.

Os golpes que aprendi para me defender em caso de:

Ataque frontal

Se agressor pega seu pescoço, vá direto com os dedos na garganta dele. A pressão na traqueia sufoca e é eficiente com a ponta dos dedos. Não use as unhas, que podem quebrar e fazer você sentir dor em vez de feri-lo. Nível de dificuldade: baixo

Ataque pelas costas

Feche sua mão e use a ponta dos dedos dobrados. Esfregue-as com toda força no dorso da mão do agressor que está te prendendo. Essa região é cheia de nervos e sensível. Esse movimento pode livrar da imobilização. Nível de dificuldade: médio

Ataque na lateral

O agressor te abraça pela lateral, como se estivesse acompanhando você na rua. Use seu braço que está ao lado do corpo dele, para atingir direto a região genital. Depois, use o cotovelo para golpear o nariz ou o queixo dele. Nível de dificuldade: alto

E se o agressor estiver com um revólver?

Por mais que me sentisse confiante ao aprender novos golpes, eu me questionava se um dia aquelas mulheres estariam 100% prontas para se defenderem de um ataque. As mais experientes, numa situação de luta corpo a corpo, talvez. Mas e se o agressor estiver com um revólver durante um assalto, um sequestro, uma tentativa de estupro?

"Em uma situação com arma de fogo, o equilíbrio emocional conta mais do que a técnica", me explicou Marcelo. "Se você perceber que não vai correr nenhum risco ao entregar o que o agressor quer, entregue. Mas se a intenção dele for algo mais grave, aproveite uma brecha e reaja!", me aconselhou Marcelo.

Concluí que por mais que eu me sentisse preparada para uma luta corpo a corpo, não partiria para o ataque. 

Intimidada por uma arma, nem se eu fosse a Ronda Rousey reagiria

"Sofri assédio e entrei em depressão. Hoje sei me defender"

Isadora Moura, 28, era uma das minhas colegas no curso. Uma veterana: faz as aulas há dois anos e meio, três vezes por semana. "Se um dia eu for atacada e a opção for morder, vou morder. Se for enfiar o dedo no olho, é isso que farei. Agora tenho suporte para me defender."

A assistente financeira procurou o curso de defesa pessoal após sofrer assédio sexual no trabalho. Isadora entrou em depressão e não conseguia mais sair de casa. "Não estava vivendo mais...", me contou. Tudo piorou quando uma amiga dela foi estuprada, ao voltar da faculdade. "Fiquei abalada, com mais medo ainda e percebi que precisava aprender a me defender."

O medo de ser atacada não é uma paranoia. Aconteceu comigo, com minha amiga e acontece todos os dias

Isadora pegou um panfleto do curso por acaso e decidiu investir. "Ainda evito lugares perigosos, claro, mas me sinto confiante. Não fico mais com aquela palpitação se vejo um estranho se aproximar na rua e não deixo mais de sair de casa."

É preciso saber lutar para existir como mulher?

Fiz dois dias de aula, duas horas em cada. Segundo o professor, é preciso, no mínimo, três meses de prática regular para, de fato, estar pronta para encarar o perigo das ruas.

Desde o primeiro instante me senti acolhida naquela sala, descalça, em cima do tatame. Todos tentaram ensinar e corrigiram meus erros ao executar os golpes. Mas não conseguia parar de pensar no risco que nós, mulheres, corremos diariamente. E como é absurdo o fato de estarmos ali tentando aprender a nos proteger pelo simples motivo de sermos... mulheres.

Será mesmo que chegamos ao ponto de ter que aprender a lutar para nos defender como se estivéssemos em uma guerra? 

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