Desmascarei uma assassina

A história da gateira Juliana Bussab, que investigou a primeira serial killer de animais a ser presa no Brasil

Mariana Araújo e Vladimir Maluf Da Universa
Carine Wallauer/UOL

A primeira serial killer de animais presa no Brasil foi desmascarada por um dos nomes mais importantes da proteção no país: Juliana Bussab, uma das fundadoras da ONG paulistana Adote Um Gatinho.

Em 2011, Juliana desconfiou que alguma coisa estava errada com uma tal de Dalva. O nome dela aparecia sempre nos grupos de proteção, como uma pessoa que estaria abrigando inúmeros bichos sem lar. Mas eram bichos demais. Como ela poderia, sozinha, ajudar mais animais do que uma ONG consolidada?

Ela não ajudava. O desenrolar da investigação que Juliana iniciou foi mais chocante do que ela mesma imaginava: Dalva Lina da Silva recolhia cães e gatos para matá-los. A prisão dela, porém, só ocorreu em 2018.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Cuidado com a Dalva

O nome de Dalva começou a aparecer com frequência em grupos de proteção animal, em 2011: "a Dalva ajuda", "vê se a Dalva pega esses filhotes”, "a Dalva tem espaço na casa dela"... As pessoas deduziram que ela era, então, uma pessoa que ajudava bichos sem lar.

"Ela cobrava R$ 35 para pegar um animal, na época, dizendo que era para a vacinação e castração, e que, depois, ela levava os bichos para uma feirinha de doação ou para um sítio que ela mantinha no Paraná”, conta Juliana.

Como o volume de animais que ela dizia socorrer era grande, Juliana desconfiou e resolveu telefonar para Dalva, que repetiu a história do sítio.

“Na hora eu saquei que era mentira, pois ela não conseguiu me explicar de onde saía o dinheiro para cuidar de tantos animais. Eu sei quanto custa manter um abrigo, e ela nunca foi ligada a nenhuma organização, nada.” Juliana escreveu um e-mail para os protetores, para evitar que a mulher pegasse mais bichos, e a mensagem se espalhou: “Cuidado com a Dalva”.

Uma protetora não leu

Dias depois, uma conhecida de Juliana havia resgatado 16 gatos, em um prédio de São Paulo. A ONG estava lotada e não poderia recebê-los. “Na manhã seguinte, essa minha conhecida me ligou: Juliana, já arrumei um lugar para eles, deixei com a Dalva”.

Juliana perguntou se ela não sabia do e-mail que havia sido disparado e a mulher se desesperou. "Desliguei e liguei para a Dalva, pedindo os animais de volta, mas ela respondeu que já havia mandado os animais para o Paraná. Falei: Mentira. Como você conseguiu mandar 16 gatos para o Paraná em menos de 24 horas? Você está fazendo alguma coisa e eu vou descobrir”. 

Dalva ameaçou Juliana: “Meu namorado é policial e sua cara é conhecida. Cuidado”. Juliana, então, conversou com protetores e contratou os serviços do detetive Edson Criado, que passou a fazer campana na porta da casa de Dalva no dia 19 de dezembro de 2011. 

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Ninguém imaginava o que Dalva fazia

Juliana combinou com o detetive Edson que ele observaria Dalva todos os dias, das 8h às 20h. “Eu não tinha nem foto dela, não tinha nada”, conta ele.

A princípio, a desconfiança era de que Dalva abandonava os animais em outro local ou negociava sua venda para restaurantes que, clandestinamente, comercializam carnes de cães e gatos. Em sua primeira hora à espreita, surgiram as primeiras suspeitas —e vítimas. 

Chegavam de 10 a 12 gatos por caixa, às vezes várias por dia”

Dalva recepcionava as pessoas que traziam os animais sem sair do portão, descarregava os animais em casa e devolvia as caixinhas vazias.

No entanto, o detetive começou a estranhar um detalhe: muitos animais chegavam, mas nenhum saía. De olho na picape estacionada na garagem, achando que em algum momento ela sairia para despachar os bichos, Edson se surpreendia com a aparente tranquilidade da moradora.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Animais jogados no lixo

Com o passar dos dias, Edson percebeu que Dalva tinha um hábito incomum: como colocar o lixo na porta dos vizinhos no fim da noite. No dia 12 de janeiro de 2012 —em meio a uma forte chuva—, o detetive, finalmente, teve a chance de mexer em um saco de lixo que Dalva havia acabado de descartar. 

Dei de cara com dois gatinhos, um abraçando o outro, enrolados em jornal".

Com a chegada da PM e da TV Record, chamados por Edson, o número só aumentaria: 37 animais foram descobertos espalhados pela vizinhança. “Foram 22 dias até o flagrante; e, nesse período, calculei uns 300 animais deixados na casa. Até mais. Menos do que isso, não”.

Dalva foi encaminhada para a delegacia, onde assinou um termo circunstanciado, se comprometendo a comparecer quando solicitada pela justiça e voltou para casa. Condenada em primeira instância, em 2012 [entenda a seguir], ela recorreria e viveria em liberdade até 2016.

Condenada mais uma vez em 2017, ela se tornou foragida até 1º de fevereiro de 2018, quando foi reconhecida pelo gerente de um banco em São Paulo, que a denunciou. Dalva foi presa e, hoje, cumpre sua pena em regime semi-aberto, no Centro de Detenção Provisória Feminino do Butantã, na capital paulista.

Carine Wallauer/UOL

"Quando soube que a Dalva estava em regime semi-aberto, eu me senti traída"

Juliana Bussab

Reprodução Reprodução

Quem é Dalva Lina da Silva?

Uma questão nunca foi respondida pela investigação dos crimes de Dalva: por quê? Ela nunca confessou a totalidade das mortes e atribuiu a algumas o caráter de eutanásia. E, diante dos registros de crueldade, é difícil juntar as peças do quebra-cabeça que compõem sua personalidade.

Apesar de nenhum tipo de perícia psiquiátrica ter sido realizada para determinar se Dalva possuía algum distúrbio de comportamento ou doença mental —já que, no Brasil, uma avaliação assim é tipicamente requisitada pela defesa— o detetive Edson Criado, presente durante o flagrante, não acredita que este seja o caso dela.

“Minha impressão é que ela é uma estrategista, tem consciência plena do que faz.” O advogado da ONG Adote Um Gatinho, Rodrigo Carneiro, que acompanhou os depoimentos de Dalva no julgamento, concorda.

“Em nenhum momento ela aparentou estar fora do ar, com fala confusa... Estava bem atenta. Então, acredito que ela matava por prazer. É a única justificativa. Para executar tudo isso, ela tinha um grande trabalho. Ela perdia tempo para receber quem trazia animais, tinha gastos com o medicamento [controlado que usava para matar] e com as ferramentas que usava”.

Rodrigo ainda afirma que Dalva construiu cuidadosamente sua imagem de protetora animal e, inclusive, se preocupava em alinhar seu comportamento aos de protetores reais. “Às vezes, ela pedia ao doador um saco de ração ou uma quantia baixa de dinheiro dizendo que era para custear uma castração. Mas era um disfarce. Mesmo que você não levasse nada, ela recebia o animal, porque o intuito era esse”.

Organizada, ela chegou a recolher cerca de dez a vinte animais por dia, desde 1998. segundo os registros do processo que a condenou à prisão.

“Quando o caso se tornou público, as pessoas comentavam: ‘deve ser uma velhinha louca’. Mas não era nada disso. Ela tinha 42 anos, viúva de um médico, morava em um bairro nobre, em uma casa grande, uma filha na universidade. Era uma pessoa que, teoricamente, tinha uma vida confortável e regrada. Ninguém imaginava que, por trás disso, ela cometia aqueles atos”.

Carine Wallauer/UOL
Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Método cruel e doloroso de matar

O caso de Dalva só terminou em prisão por conta da crueldade a que ela submeteu os animais. Os 33 gatos e quatro cães, encontrados em sacos de lixo naquele 12 de janeiro de 2012, morreram de maneira dolorosa após agonizarem por horas, segundo o perito ouvido pela Justiça para o caso, Paulo César Maiorka, especialista em patologia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo.

A causa da morte foi o que Paulo caracterizou, em entrevista à Universa, como “colapso cardiocirculatório”, ou seja, na tentativa de acertar o coração para injetar uma substância de uso controlado, Dalva perfurou o tórax de cada um —amarrados, em posição de crucifixão— repetidas vezes, provocando lesões e hemorragias internas fatais.

Durante a audiência do processo, a condenada caracterizou suas ações como eutanásia. Ela disse que “agiu assim por não suportar ver o sofrimento de animais” e que ama “principalmente os gatos”.

Dalva ainda garantiu que os animais estavam “em fase terminal” e não respondiam a tratamentos. Por isso, ela teria decidido “sacrificá-los com o uso de injeções contendo analgésicos”, seguindo as instruções de um veterinário. Não é verdade.

“Os animais não eram portadores de doenças crônicas. Muitos tinham verminose e falta de alimentação correta, denotando a falta de cuidados”, explica o especialista.

Ainda de acordo com Paulo, a substância usada por ela não tem efeito anestésico em animais de pequeno porte —seu uso é recomendado para cavalos. “Os animais sentiram a dor e estavam conscientes no momento da execução”.

Ao se defender no tribunal, Dalva se responsabilizou pela morte de apenas seis animais e afirmou que os outros foram colocados no local para incriminá-la. No entanto, Paulo atestou que o método utilizado para matar os 37 bichos foi exatamente o mesmo. E que, ao contrário do que a acusada alegou, seus atos não denotam nenhum conhecimento ou treinamento médico.

“Nunca tinha visto um caso semelhante. Tanto pelo número, quanto pela forma brutal com que os animais foram tratados”, diz o professor.

A Universa entrou em contato com o advogado de Dalva, que não deu declarações sobre o caso. 

Onde estão os comparsas?

Pessoas do círculo íntimo de Dalva não foram ouvidas pela Justiça durante o processo que a condenou. A única exceção foi o pai de sua filha caçula, uma criança à época do julgamento, que teve seu depoimento dispensado pela juíza. “Ele não respondeu às perguntas que foram feitas”, relembra o advogado Rodrigo Carneiro, do Adote Um Gatinho”.

A arquitetura do imóvel também ajudou a condenada a manter seus atos em segredo. “Dentro da casa dela, que era bem grande, existia um cômodo chamado na investigação de ‘quarto da tortura’, que era onde Dalva executava os animais. Esse quarto era fechado. Os vizinhos não ouviam nada”, acredita Rodrigo.

Mas será que ninguém tinha ideia do que acontecia entre as quatro paredes da casa de Dalva?

Para Susan Yamamoto, a parceira de Juliana na fundação da ONG, Dalva tinha, sim, cúmplices. “No mínimo, a pessoa que vendia para ela os anestésicos, já que ela não é veterinária ou médica e não tem permissão para comprar sozinha”. Em depoimento, a ré disse ter tido acesso às substâncias em farmácias populares. No entanto, elas têm venda controlada —portanto, não explica como a assassina as conseguiu.

Eduardo Anizelli/Folhapress Eduardo Anizelli/Folhapress

Perfil de serial killer

Dalva foi sentenciada a 12 anos, 6 meses e 14 dias de detenção em 2012, quando a juíza Patrícia Álvares Cruz utilizou um estudo do F.B.I. (Federal Bureau of Investigation, a polícia federal americana) para caracterizá-la como uma assassina em série —e, portanto, uma ameaça à sociedade.

“O perfil do serial killer, desenvolvido pela Unidade de Ciência Comportamental do FBI, frequentemente inclui a crueldade contra animais. Em estudo citado na mesma obra, sugere-se que matar animais pode ter possibilitado que esses indivíduos se graduassem, passando a matar humanos”, justifica a juíza na sentença.

Apesar de a defesa ter recorrido da decisão, Dalva teve não só o veredito confirmado, como sua pena aumentada —por conta do abuso de medicação controlada—, em 2017: ela foi condenada, em segunda instância, a 16 anos, 6 meses e 26 dias de detenção pelos seus crimes.

Para o jurista Tagore Trajano, pós-doutor em Direito Animal pela Pace University, de Nova York, e professor da Universidade Federal da Bahia, apesar de o caso de Dalva ser histórico, era possível que ela recebesse uma pena ainda maior.

“Não se pode dizer que a punição foi tão severa, uma vez constatada a morte de 37 animais, o que configura a aplicação do artigo 32 [da Lei de Crimes Ambientais] diversas vezes”. 

Segundo a legislação, abuso, maus-tratos e mutilação podem levar à detenção de três meses a um ano, além de multa. Caso o animal morra, este número pode ser aumentado de um sexto a um terço.

Semi-aberto

A lei não permite a reclusão, ou seja, que Dalva seja presa em regime fechado, explica Tagore Trajano. “A legislação ambiental acredita que a sentença terá um papel pedagógico, dando ao infrator a chance de se recuperar e mudar de comportamento”. 

Crimes contra animais, no Brasil, frequentemente acabam em prestações de serviços e doação de cestas básicas. E o caso de Dalva se destaca. Por isso, o jurista acredita que o Brasil ainda precisa dar passos em relação ao bom uso da lei existente.

“O Brasil possui boas legislações de proteção animal, mas ainda há uma confusão grande em como aplicar esta legislação. É necessária melhor formulação do que seria a crueldade. Desta forma, o caso Dalva não seria considerado único ou severo. Existem diversas Dalvas em todo território nacional."

"Paguei um preço alto"

“Dezesseis gatos. Nunca vou me esquecer daqueles bichos. Graças a eles é que a Dalva foi desmascarada, mas não me esqueço deles”.

Com a prisão de Dalva, Juliana diz que não pensa na assassina, mas nas vitórias para a proteção animal, mesmo sabendo que a pena está sendo cumprida em regime semi-aberto.

"Acabou a mamata da cesta básica. Antes, uma pessoa como ela ia pintar uns muros, fazer umas doações e ficava livre. Agora, não".

Na época, Juliana foi ameaçada, se isolou em casa, entrou em depressão. “Paguei um preço alto por tudo isso. Não conseguia parar de pensar naqueles 16 gatos que perdemos, nos sacos cheios de animais mortos, ainda mais que tinha de cuidar dos que resgatei vivos da casa dela”.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL
Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Como ajudar?

O caso de Dalva representa um extremo da crueldade, mas cerca de 30 milhões de outros animais estão expostos a elas por viverem abandonados no Brasil, segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde.

Só nos primeiros sete meses após a criação da DEPA —Delegacia Eletrônica de Proteção Animal do Estado de São Paulo, que registra ocorrências pela internet— houve mais de 4.000 denúncias de maus-tratos, segundo dados da Polícia Civil.

“Tem desde aquela pessoa que mantém o cachorro na corrente e acha que não está fazendo nada demais, a pessoa que trabalha em pet shop e bate nos animais durante o banho até a Dalva, que assassinava em série”, explica Susan..

Apesar de haver diferentes graus de abuso cometido contra os animais, há alguns alvos mais frequentes: gatos pretos e brancos, por exemplo, frequentemente são maltratados por superstições e envolvidos em rituais religiosos.

Se você vai doar um bichinho, tome alguns cuidados para evitar que eles não estejam em mãos erradas. Em primeiro lugar, é possível procurar uma ONG —neste caso, Susan aconselha a visitar o estabelecimento com antecedência, checar informações em redes sociais e procurar se há prestações de contas públicas do trabalho do local.

Caso doe diretamente para alguém, converse com o interessado, visite a casa, verifique se é segura e se o adotante tem condições financeiras de acolher os animais que possui.

Outra alternativa é realizar um termo de responsabilidade animal entre o doador e o adotante, uma via para cada, que pode ser registrada em cartório. Ali, é possível pedir o RG e um comprovante de residência da pessoa que vai receber o animal, que pode facilitar a checagem dos dados.

Caso suspeite de maus-tratos, seja contra animais que doou ou não, procure uma delegacia especializada em crimes contra o Meio Ambiente na sua região. A Polícia Militar, a Polícia Ambiental e o próprio Ministério Público podem ser acionados pelo cidadão, segundo orientação da Cartilha de Defesa Animal do MP-SP. Mesmo que não haja denúncia feita na polícia anteriormente, o promotor pode orientar os próximos passos a seguir.

Veja a íntegra da entrevista

Juliana Bussab dá mais dados do caso Dalva e fala sobre a condenada estar no semi-aberto. Clique para assistir

Curtiu? Compartilhe.

Topo